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sexta, 29 de março de 2024

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Clubes negreiros resistem ao tempo para preservar memória afrodescendente no RS

Clubes negreiros resistem ao tempo para preservar memória afrodescendente no RS
22 setembro
22:02 2013
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A Biblioteca Negra de Pelotas é a única de literatura exclusivamente negra no país

Na prateleira em madeira rústica, um vidro preserva o estandarte com a imagem do pierrô de fantasia azul e branca. Na parede, um quadro com o Zumbi dos Palmares desenhado à mão. Em cima do armário, toda a coleção de troféus adquiridos nas vitórias do carnaval desde a década de 1920. Este é o Clube Social Negreiro Pelotense Fica Ahi pra ir Dizendo, de onde surgiu a primeira escola de samba do Rio Grande do Sul. A memória da fundação, em 27 de janeiro de 1921, está preservada em painéis nas paredes do salão que até hoje abriga bailes para a comunidade negra da cidade e região.

O presidente do Clube Fica Ahi, Raul Ferreira, conta que após o sucesso do bloco no carnaval de Pelotas, o grupo decidiu fundar um clube social. “Como não tinham local para a reunião de fundação do clube, colocaram um cidadão na praça em frente à Prefeitura e disseram para ele: ‘fica ai pra ir dizendo onde é a reunião’. E assim nasceu o nome do clube”, afirma.

Como carnaval de rua era popular e os festejos em clubes considerados ‘elitizados’, houve divisão entre os frequentadores do clube e a escola de samba se separou. Hoje, a Academia do Samba não tem mais relação com o Fica Ahi. Das quermesses e festivais, só restam fotos nas paredes de um dos espaços da entrada do prédio.

O local pelo qual já passou Ângela Maria, Leci Brandão e outros artistas representantes da negritude brasileira abriga também a única biblioteca de literatura exclusivamente negra no país. A Biblioteca Negra de Pelotas abriga cerca de 400 títulos adquiridos por doações. “O professor Uruguay Cortazzo sentiu falta da bibliografia negra e adquiriu os primeiros exemplares para trabalhar no grupo de estudos negros da Universidade Federal de Pelotas, o Sangoma”, explica a professora de História Maria Tereza Barbosa.

Primeiro clube de integração entre brancos e negros nasceu em Jaguarão
Cerca de 140 quilômetros de distância do Fica Ahi, na cidade de Jaguarão, outro clube é marco de resistência da cultura negra no estado. Com 95 anos, o 24 de Agosto leva o nome da data de sua fundação, no ano de 1918. O número 24 também simboliza a quantidade de homens que iniciaram encontros para socializar na no século em que a discriminação racial fazia uma radical segregação na cidade. “Só os brancos iam para os clubes socializar. Negros e pobres não podiam. Então, 24 homens começaram a se encontrar e decidiram fundar um clube”, conta o atual presidente, Nei Madruga.

O que poderia ser uma revanche foi o maior gesto de pacificação da época. Quando abriu as portas como clube social, o 24 de Agosto passou a ser o primeiro local de integração entre brancos e negros. “Tínhamos um verdadeiro apartheid aqui. Mas acreditamos que é importante a presença das duas raças, até para sobrevivência do clube. Não vivemos apenas da economia dos negros”, ressalta seu Madruga.

Os dois clubes negreiros situados na metade sul do estado foram contemplados no edital de pontos de cultura do Governo estadual e receberão recursos da Secretaria Estadual de Cultura. Ambos tombados como patrimônio histórico imaterial, os espaços serão restaurados e poderão preservar a cultura dos afrodescendentes do sul do país.

“Dos 82 pontos de cultura do último edital, quatro são clubes negros. Temos também pontos de cultura em assentamentos, comunidades indígenas, locais de hip hop, enfim, queremos valorizar a diversidade do nosso estado”, diz o secretário estadual adjunto de Cultura, Jeferson Assumção.

Um total de R$ 18 milhões está sendo investido nesta etapa. Em outubro, haverá abertura de novo edital para mais 72 pontos de cultura no estado. “O mais importante não é o recurso para reforma dos prédios, é a preservação do bem imaterial para o estado. No caso do 24 de Agosto, ele ia ser vendido para ser um supermercado por falta de dinheiro. Nós intervimos junto com a prefeitura para que isso não ocorresse”, relata Assumção.

“Se fecham estes locais, a gente cai no esquecimento. Precisamos de mais pessoas da sociedade se envolvendo com nossas raízes, pessoas jovens que são descendentes destas agremiações”, afirma o presidente do 24 de Agosto, Nei Madruga, ao lembrar que pessoas lutaram há 95 anos para erguer este patrimônio. Segundo ele, preservá-lo elevará a cidade. “Hoje somos reconhecidos como patrimônio histórico. Isto é muito importante”, avalia.

O incentivo do estado irá contribuir para sanar o déficit cultural sobre a cultura negra no Rio Grande do Sul, acredita a produtora cultural pelotense Nailê Machado. “A sociedade hoje está modificada. O negro não se vincula mais ao clube e temos dificuldades dentro do movimento social negro. Para sobrevivermos temos que ter projetos que tragam a comunidade para dentro da cultura negra que seja algo além do samba, pagode, hip hop, rap, nós temos vários outros tipos de cultura que convivemos de forma mais aberta hoje. O governo do estado acredita neste nosso projeto. Não teríamos uma luz no fim do túnel se o estado não enxergasse o valor da baixa cultura e da cultura afro”, defende.

029pr190913APOIO – O ponto de cultura Fica Ahi receberá R$ 180 mil do Governo do Estado e promoverá oficinas de capoeira e dança afro, pintura, contação de histórias, artesanato, desenho, confecção de máscaras africanas, edição de vídeos, fotografias, percussão, construção de sopapo, economia criativa, sustentabilidade e captação de recursos. Também serão realizados encontros e cortejos com mestres griôs, formações, debates e ciclo de leituras a partir das reflexões de autores negros. Já o Clube 24 de Agosto prevê oficinas de dança, capoeira, culinária afro, oficina de horta e música. O projeto também trabalhará com rodas de memória, contação de histórias e atividades cineclubistas.

“Hoje o poder público está dando importância para nossa cultura e isso fortalece a nossa resistência. Um clube social é importante para preservação das raízes do povo e preservação da história. Como diz o nosso hino: ‘povo sem história acaba por ser escravo’, avalia Nei Madruga. (Texto: Rachel Duarte Fotos: Pedro Revillion/ Palácio Piratini )

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