Artigo: Na eleição na UFPel, precisamos ler o Pequeno Príncipe
Alvaro Augusto de Borba Barreto
Professor da UFPel
A frase do Pequeno Príncipe, “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas” virou quase um lugar comum. Algo meio piegas. Uma lacração démodé, com todas as ironias que esta frase contempla. Mas, de algum modo, também é algo que precisamos levar em conta, quando, envolvidos em um turbilhão, parece que perdemos a capacidade de ver as coisas. E esse é o caso da recente eleição para reitora da UFPel.
No que tange à definição de seus reitores, as universidades federais ainda padecem de muitas limitações. Legalmente, o sistema não é uma eleição, e sim a nomeação por escolha do Presidente da República, a partir de uma lista tríplice. Por sua vez, a lista é definida pelo Conselho Universitário (Consun) de cada instituição ou, então, por uma consulta (eleição) formal à comunidade universitária na qual o peso dos docentes é de 70% e, juntas, as duas outras categorias (funcionários e alunos), respondem pelos 30% restantes.
Ao longo dos anos e como forma de democratizar este processo, foi adotada como alternativa a chamada consulta informal, uma eleição, na qual o voto é paritário (um terço para cada categoria) ou, excepcionalmente, universal (cada partícipe da comunidade tem um voto, independentemente da categoria à qual pertence). Realizada a consulta, é preciso garantir que o Consun, único órgão legalmente autorizado a formular a lista tríplice a ser encaminhada ao Presidente, aceite o resultado e corrobore a vontade da comunidade.
É fácil perceber que este não é um processo simples, pois sujeito a vários percalços. O Consun pode, simplesmente, não reconhecer a consulta ou formular a lista tríplice com o “cabeça” de chapa concorrente, de modo a esvaziar o resultado da consulta. E, ainda que o Consun corrobore a consulta, não há garantias de que o Presidente, ao fazer a nomeação, escolha o primeiro nome, pois a decisão é uma prerrogativa do Chefe do Executivo. Ele pode escolher o 3º nome da lista, como o fez na UFRGS na penúltima eleição; pode escolher o 2º colocado, como o fez na UFPel na penúltima eleição. Ou, simplesmente, pode não reconhecer a lista e nomear outro nome. Todos esses casos ocorreram, por exemplo, na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Enfim, esse imenso “nariz de cera” serve para indicar que, na indicação do reitor, a consulta à comunidade é uma conquista política que, para ter o seu resultado reconhecido, enfrenta imensas dificuldades. Todos esses desafios são externos ou posteriores à realização da consulta. Entretanto, há os desafios internos e que são essenciais até para que ela possa se credenciar a enfrentar os obstáculos externos. Tais desafios dizem respeito à credibilidade da própria consulta. E, nesse quesito, no atual processo da UFPel, temos falhado demasiadamente. E, assim, dado espaço a que se efetive a escolha sem consulta ou que, na prática, a consulta não tenha efeito.
Esse é (ou corre o sério risco de ser) o resultado do esforço de atores distintos, mas que, no conjunto, ainda que inconscientemente ou por interesses parciais, contribuem decisivamente para deslegitimar a consulta à comunidade como mecanismo de escolha do reitor(a) da Universidade neste processo e, pior de tudo, nos próximos anos.
Assim, vejamos. Primeiro, a consulta esteve em risco de não ocorrer porque as três entidades tradicionalmente responsáveis por promover e organizar o processo não chegavam a um acordo. Quando finalmente houve o acerto, definiram um conjunto de regras com um tal grau de fragilidades na formulação do “rule making” eleitoral (regras que definem como o jogo deve se processar) que não parece corresponder a um processo desenvolvido no âmbito de uma Universidade. Por exemplo: a definição de dois procedimentos distintos de votação (presencial e on-line para estudantes, exclusivamente presencial para docentes e funcionários) dá eco às mais estranhas reclamações da extrema-direita brasileira e internacional e não encontra justificativa razoável. A ausência de uma regra de desempate é surpreendente, considerando que a própria legislação eleitoral brasileira tem o seu critério.
Depois, foi formulado um Organismo Eleitoral, destinado a promover o pleito, o chamado “rule application” (o gerenciamento do jogo) que, quando confrontado com um acontecimento muito pouco provável, afirmou um resultado (ou melhor, um suposto não resultado), o empate, que não é compatível com as regras mais elementares da matemática, pois é possível estabelecer um vencedor conforme os princípios dos cálculos que subsidiam a paridade. Se os votos apurados correspondem à vitória de um lado ou de outro, conforme a validação dos votos, é uma coisa. Porém, o empate é o resultado da igualdade absoluta entre os competidores. Se for esse o caso, ok. Mas o empate não pode ser o juízo decorrente de uma quase igualdade. A não ser que o Organismo Eleitoral não tenha a racionalidade necessária para alcançar um resultado (seja ele qual for) ou, pior, não tenha a coragem política para assumir esse resultado e honrar o papel que assumiu perante a comunidade universitária.
Como parte desse festival de erros que se tornou a consulta para reitora na UFPel, as chapas que chegaram ao 2º turno não renunciam a um papel relevante. Não vou nem comentar o festival de equívocos que foi a campanha como um todo e a do 2º turno em particular, no qual vencer passou a ser um valor que não se dobrava a nenhum parâmetro – talvez seja uma contingência do que se tornou a nossa vida à qual as peculiaridades da Universidade não consegue ser barreira suficiente. Pois este comportamento se mantém no pós-apuração. O respeito ao resultado das urnas não é algo que qualquer uma das chapas pareça estar disposta a se dobrar, a não ser que este seja a favor dela. Não sendo assim, a regra tem sido pôr em suspeição o processo eleitoral. Suspeita-se do voto eletrônico, do voto em papel ou a qualquer outro valor, fazendo do “rule adjudication” (o contencioso eleitoral) o meio para alcançar a vitória, a repetirem-se discursos deslegitimadores das eleições que se ouve mais cotidianamente no chamado “mundo da política”, pois um único voto alterado pode mudar o resultado da eleição.
Pois este é o ponto principal. Ao final e ao cabo, o saldo dessa consulta, seja para qual lado no final penda a vitória, será a derrota de todos nós. Fizemos uma consulta que não legitima nenhum vencedor, seja porque supostamente ninguém venceu, seja porque quem perdeu não aceita o resultado. Em sendo assim, o Consun, vai aceitar o empate ou uma vitória de Pirro de algum dos lados? Ou tudo isto é um salvo-conduto para que a definição da lista tríplice se dê, afinal, no Consun, de modo que este defina como achar melhor e conforme a correlação de forças que lá prevalecer?
Será que, independentemente de quem vença e/ou venha a ser escolhida reitora agora, não estamos nós todos, trabalhando para desqualificar a consulta à comunidade como instrumento da definição da reitoria da nossa universidade? Será que não estamos construindo uma narrativa para que no futuro, seja lá quais forem os pretendentes, estejamos quase todos nós excluídos de uma participação nessa definição? Será que todo o patrimônio e a história de lutas e conquistas (e derrotas também) que a Universidade acumula ao longo de mais de 30 anos na construção da perspectiva de escolher o dirigente máximo da instituição precisam ser vilipendiados desse modo e serem subordinados à necessidade imperiosa de vencer? Ficam os apelos à reflexão.