Coluna de Cinema – Edição 23

Better Man – A História de Robbie Williams: o lado B do sucesso
Os anos 90 foram marcados pela proliferação das boy bands, fenômeno que conquistou o mundo da música e deixou um legado nostálgico. Algumas dessas bandas alcançaram o topo das paradas musicais e lotaram estádios ao redor do globo, tornando-se ícones de uma geração. Hoje, são lembradas com carinho por fãs que, em muitos casos, já são adultos e até pais de família. Grupos como Backstreet Boys, *NSYNC, New Kids on the Block e One Direction viveram o auge do sucesso, mas também enfrentaram o inevitável declínio que acompanha a fama meteórica.
As meninas também tiveram seu espaço nesse cenário. No Reino Unido, as Spice Girls surgiram como um furacão cultural, redefinindo o conceito de girl power e rivalizando em popularidade com outro fenômeno britânico que conquistou o mundo: o Take That. Foi nesse contexto de ascensão e queda, de glória e desafios, que histórias como a retratada no filme Better Man ganham vida, oferecendo um olhar sobre os bastidores da fama e os sacrifícios que ela exige.
Artista mais destacado do Take That em sua formação original, Robbie Williams ganhou uma projeção que inevitavelmente incomodou a vaidade dos demais participantes do grupo. Então, o inevitável aconteceu: Robbie foi gentilmente convidado a sair. Foi nesse momento que começou a fase de maior sucesso de sua carreira, quando ele se lançou como cantor e compositor solo. Rapidamente, tornou-se o maior astro da música britânica e um dos maiores nomes da cena pop mundial. A cinebiografia Better Man – A História de Robbie Williams (Better Man, 2024) conta essa trajetória de uma maneira que você nunca viu, recriando o artista como um macaco, e não como um ser humano.
À primeira vista, a história de Robbie Williams parece seguir um arquétipo familiar no universo das cinebiografias de superastros da música: a ascensão meteórica, os excessos do estrelato, as batalhas contra os vícios e a busca por redenção. Em outras mãos, essa narrativa poderia resultar em um filme trivial e previsível, mais um retrato convencional de fama e decadência. No entanto, Better Man escapa dessa armadilha ao introduzir uma inovação audaciosa: a substituição do artista de carne e osso por um macaco gerado por CGI. Essa escolha surreal e simbólica não apenas desafia as expectativas do público, mas também liberta a narrativa dos limites convencionais do gênero.
Consta que a ideia de utilizar a figura de um macaco surgiu nos momentos iniciais do projeto, quando o realizador questionou Robbie Williams sobre qual animal melhor o representava ou com qual ele mais se identificava. O resultado dessa pergunta está na tela. O macaco, como uma figura fantástica e quase onírica, permite explorar a psique de Williams de maneira mais livre e metafórica, transformando a cinebiografia em uma experiência visual e emocional que transcende a mera reconstituição de fatos. É como se o filme dissesse que, para entender a complexidade de um ícone pop, é necessário ir além da realidade — adentrar o reino da fantasia, onde os conflitos internos e as verdades mais profundas podem ser revelados de forma mais vívida e impactante.
O conceito que sustenta Better Man é, ao mesmo tempo, inovador, desafiador e disruptivo. Em um gênero frequentemente marcado por narrativas que glorificam o ego e a mitologia pessoal de artistas famosos, este filme opta por um caminho inverso e surpreendente. Em vez de mergulhar na exposição convencional da imagem pública de Williams, o filme suprime a estética e o simbolismo tradicionalmente associados ao artista. A ausência de sua figura reconhecida — seja por meio de imagens de arquivo ou reconstituições — é uma escolha audaciosa que convida o espectador a refletir sobre a persona versus a pessoa, o mito versus a realidade. Essa abordagem não apenas desafia as expectativas do público, mas também expande os limites do que uma cinebiografia costuma ser, priorizando a introspecção e a humanidade em detrimento de uma simples celebração do estrelato.
Os números musicais e a exploração do universo interior de Robbie Williams proporcionam os momentos mais memoráveis e visualmente espetaculares de Better Man. Aqui, o adjetivo “espetacular” se justifica plenamente: trata-se de uma experiência que encanta o olhar, com um sedutor espetáculo de cores, luzes, movimento e encenação. Essas sequências, repletas de energia e inventividade, ecoam as origens britânicas do artista, remetendo em certa medida ao cinema lisérgico e psicodélico do “malucão” conterrâneo Ken Russell, um dos cineastas mais ousados e visionários da Inglaterra. Não é difícil traçar uma conexão entre a estética exuberante de Russell — conhecido por suas narrativas alucinadas e visuais extravagantes em filmes como Tommy e Os Demônios — e a abordagem do diretor australiano Michael Gracey, que parece ter bebido dessa fonte para criar cenas que transcendem a simples biografia e mergulham no universo sensorial e emocional de Williams.
O mergulho de Robbie Williams em sua biografia, apesar de sua condição de produtor executivo e colaborador do roteiro, está longe de ser um mero exercício de ego trip ou uma celebração autocomplacente de sua carreira. Seu propósito transcende a simples glorificação pessoal, revelando-se mais profundo e introspectivo. Williams parece genuinamente disposto a se expor diante das câmeras com uma honestidade rara, na plenitude de sua humanidade e vulnerabilidade. Ele não hesita em revelar suas falhas de caráter, suas fraquezas e os momentos de derrocada causados pelos vícios que quase destruíram sua vida e carreira. Better Man funciona, assim, como uma espécie de sessão de terapia coletiva, na qual o artista se submete a uma autoanálise pública, sem censura ou medo de julgamentos. Essa abordagem corajosa não apenas humaniza Williams, mas também convida o público a refletir sobre suas próprias lutas e imperfeições, transformando o filme em um espelho tanto para o artista quanto para quem o assiste.
Apesar de Better Man ser uma cinebiografia não convencional, estrelada por um personagem ‘macaco’, esse fato não exige demasiada suspensão de descrença por parte da plateia. Tudo flui com naturalidade e incrível verossimilhança. Não há estranhamento, e o conceito é rapidamente aceito, integrando-se naturalmente à narrativa. A essência do filme está em outro local: na análise fria e humana dos desafios que uma vida de fama e sucesso exigem de um artista. Original e ousado, Better Man é um espetáculo. E isso é tudo que poderíamos querer.
Jorge Ghiorzi
jghiorzi@gmail.com