A Noite em que o Brasil cantou e o mundo ouviu
O Festival Internacional da Canção de 1968 reuniu uma constelação de talentos e histórias
Marcelo Gonzales*
@celogonzales @vidadevinil
Hoje é 6 de outubro.
E sempre que esse dia chega, algo em mim desperta, como se o país inteiro respirasse, por alguns instantes, o mesmo ar do Maracanãzinho de 1968, quando a música ainda tinha o poder de desafiar o silêncio imposto pelos tempos sombrios.
Eu nasci em 1972.
Não estive lá, nem diante da televisão em preto e branco, nem sentado nas arquibancadas, mas cada vez que mergulho nas imagens e sons daquele festival, sinto como se estivesse. Talvez por isso eu tenha me tornado um pesquisador musical, para tocar, de algum modo, o que não vivi.
Naquela noite de 6 de outubro de 1968, o Festival Internacional da Canção, transmitido pela Globo, coroava sua final no Maracanãzinho, com um público que fervia entre aplausos e vaias. Era o auge da era dos festivais com um país dividido entre o medo e a esperança, e os artistas transformando dor em melodia, censura em verso, protesto em harmonia.
E foi assim que o Brasil ouviu, pela primeira vez, o canto vitorioso de Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque, interpretada pelas irmãs Cynara e Cybele.
“Vou voltar, sei que ainda vou voltar…” Esses versos suaves, de um lirismo quase melancólico, ecoaram num ginásio tenso, onde muitos esperavam outra canção: Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores, de Geraldo Vandré, a voz de um país que negava se calar. Vandré não venceu, mas saiu de lá vitorioso na alma de um povo.
Seu refrão, simples e corajoso, marchava nas ruas: “Vem, vamos embora, que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer.”
Entre essas canções, uma de exílio, outra de coragem, formava-se o retrato de um país inteiro, dividido entre cantar e resistir. A música brasileira, ali, deixava de ser apenas entretenimento, tornava-se testemunho.
A Globo, que transmitia o festival, cumpria um papel duplo, pois, exibia a festa e, ao mesmo tempo, ajudava a registrar a coragem de uma geração. Os festivais criaram estrelas e consolidaram vozes de Chico Buarque, Edu Lobo, Marília Medalha, Geraldo Vandré, Elis Regina, Beth Carvalho, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento, entre tantos outros. Era como se a televisão, ainda jovem, descobrisse seu poder cultural, e a música descobrisse o poder de existir, mesmo vigiada.
O Festival Internacional da Canção de 1968 reuniu uma constelação de talentos e histórias. Além de Sabiá e Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores, estavam lá canções como Andança, de Danilo Caymmi, Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, interpretada por Beth Carvalho e os Golden Boys, que ficou em terceiro lugar e se tornaria um clássico atemporal. Era um palco onde os futuros gigantes da MPB ainda não sabiam o tamanho que teriam, cantavam apenas porque acreditavam.
Olhar pra trás, hoje, é perceber que a música venceu a mordaça. Se não fossem os versos, as metáforas, o risco, o subtexto e o silêncio de muitos compositores, talvez estivéssemos ainda presos àquela ditadura que tentou calar o país. Mas a canção atravessou o tempo, o medo e a censura. E, no final, venceu.
Por isso, neste 6 de outubro de 2025, escrevo não apenas sobre um festival, mas sobre um marco de libertação estética e política. A cada nova pesquisa, sinto que estou menos distante daquela noite. Fecho os olhos, e posso quase sentir o cheiro de verniz do palco, o som metálico das cordas afinando, o público se levantando, uns em vaias, outros em lágrimas. E lá, ao fundo, um sabiá ainda canta, lembrando que a memória é o que nos devolve o que o tempo tentou levar.
Para quem viveu, é lembrança. Para quem não viveu, é herança. E para quem escreve sobre ela, é missão.
*Marcelo Gonzales é autor do blog Que Dia é Hoje?, vive entre discos de vinil e muita mídia física, sempre atento à música, à cultura e ao jornalismo, compartilhando histórias que conectam gerações.
Imagem Divulgação – Acervo Globo







