O dia em que o mundo ganhou dois rebeldes
Tom Petty e Snoop Dogg, cada um ao seu jeito, virando o dial da música
Marcelo Gonzales*
@celogonzales @vidadevinil
Nascidos em 20 de outubro, separados por décadas e estilos, eles provaram que rebeldia não é ruído, é identidade. E no vinil, ambos permanecem eternos.
Há discos que a gente não apenas escuta, a gente habita. Eles carregam poeira, memórias e até um certo silêncio que pede respeito antes da agulha tocar o vinil. Foi assim que resgatei da estante dois universos tão diferentes que, em algum ponto misterioso, se encontram: Tom Petty, nascido em 20 de outubro de 1950, e Snoop Dogg, nascido vinte e um anos depois, no mesmo dia. Um é estrada, vento no rosto e rock honesto de três acordes. O outro é fumaça, calçada quente de Long Beach e beats que deslizam como carros lowrider pela Pacific Coast. Mas há algo que os une além da data de nascimento… Os dois nunca obedeceram a nada além de si mesmos. E é justamente essa teimosia que faz deles rebeldes, não os rebeldes do escândalo, mas os rebeldes da autenticidade.
No vinil, essa alma indomada aparece inteira. Basta colocar Damn the Torpedoes (1979) pra girar que a rebeldia de Tom Petty se revela sem pressa, quase como um manifesto: “I won’t back down”. Já em Doggystyle (1993), o primeiro LP de Snoop Dogg, o mundo entendeu que o rap podia ser ao mesmo tempo crônico, narrativo e sedutor, sem nunca pedir licença. O curioso é perceber que, quando a agulha baixa, Petty soa tão livre quanto Snoop, e, Snoop, tão rock’n’roll quanto Petty. Porque liberdade rítmica é coisa que ultrapassa gênero.
Tom Petty nunca precisou subir o tom para ser ouvido. Sua rebeldia tinha a ver com permanência, com essa decisão raríssima de não negociar a própria sonoridade só porque o mercado exigia. Enquanto o rock dos anos 80 mergulhava em sintetizadores e produções excessivas, ele permaneceu fiel ao que acreditava com canções verdadeiras, guitarras orgânicas, narrativa direta e emoção sem espuma. Girar Full Moon Fever (1989) no toca-discos ainda hoje é como abrir uma estrada no peito. Há algo de eterno em Free Fallin quando ela sai pelos alto falantes do toca discos, não pela pureza analógica do som, mas pela honestidade da intenção. Petty não compunha para parecer grande. Ele compunha para continuar sendo ele mesmo.
Snoop Dogg também nunca quis parecer grande, ele simplesmente nasceu gigante. Quando estreou com Doggystyle, produzido por Dr. Dre, ele não trouxe apenas um disco, ele trouxe um território. Long Beach virou mapa mental, o G-funk virou linguagem e Snoop transformou flow em assinatura. Ele falava da vida como quem encosta no capô do carro e conta histórias ao pôr do sol, improvisando. Em Gin and Juice, quando ele diz ‘laid back’, o balanço não está só no beat, mas na existência. E o vinil desse álbum, pesado e grave, tem textura de rua. Não importa quantas plataformas de streaming inventem remasterizações, quem ouviu Doggystyle em LP sabe que Snoop é sentimento quente, grave pulsante e narrativa de sobrevivência.
O encontro entre os dois não está na superfície. À primeira vista, parecem opostos, com um branco do sul dos Estados Unidos, moldado pelo folk e pelo rock clássico e o outro, um negro californiano, forjado na cultura hip-hop e no universo da rua. Mas um disco de vinil revela o que o tempo costuma esconder: eles são irmãos de espírito. Ambos tiveram brigas com gravadoras, recusaram fórmulas fáceis, defenderam o direito de existir sem rótulos. E ambos entenderam que a maior rebeldia é permanecer inteiro em um mundo que tenta o tempo todo reduzir a gente a uma categoria de prateleira.
Eles também têm em comum a coisa rara de fazer parte de artistas que ainda justificam a existência do álbum como obra. Não são filhos do single descartável, são construtores de universo. Cada lado do LP é uma narrativa, um percurso. Com Petty, o lado B é sempre uma estrada mais íntima, aquela onde o homem fala mais que o mito. Com Snoop, o lado B é confissão, ironia e sobrevivência, é rua sem farol, mas com direção. O vinil preserva isso porque exige atenção. Ele pede presença. Ele pede o ritual da escuta. E Petty e Snoop são feitos de presença.
No Brasil, ambos foram descobertos pelo caminho natural da música que importa, tendo primeiro o vinil importado nas mãos de colecionadores e lojas independentes, depois pelo rádio e pelas fitinhas copiadas, e só então pelas grandes mídias. Tom Petty encontrou casa entre os amantes de rock de alma americana naquele mesmo espírito que depois se traduziria em Almir Sater, Renato Teixeira, Tavinho Moura. Snoop Dogg virou referência obrigatória para quem entendeu que o rap não era ameaça, era movimento, de Planet Hemp a Marcelo D2, de Racionais MC’s a Emicida.
Talvez seja por isso que hoje, 20 de outubro, eu tenha colocado os dois na vitrola como quem convoca duas forças antigas. Um lembra que é preciso continuar, apesar dos muros, das portas fechadas, das expectativas. O outro lembra que é preciso ser livre, apesar das grades invisíveis, dos estereótipos, dos discursos prontos. E a vida, assim como o vinil, gira. Às vezes com chiado. Às vezes com silêncio entre as faixas. Mas gira.
Enquanto escrevo estas linhas, deixo a agulha repousar. É bonito pensar que o mundo ganhou, no mesmo dia, dois homens que nunca imploraram por lugar, conquistaram o próprio espaço. Rebeldes sem pose. Ícones sem esforço. Almas que sabiam que a música é verdade ou não é nada.
Amanhã, talvez eu tire outro vinil da estante. Talvez volte para outra estrada, outro beat, outro tempo. Porque a música não passa, ela permanece. E amanhã, como sempre, eu volto aqui. Porque amanhã, você sabe, também é dia de música.
*Marcelo Gonzales é autor do blog Que Dia é Hoje?, vive entre discos de vinil e muita mídia física, sempre atento à música, à cultura e ao jornalismo, compartilhando histórias que conectam gerações.







