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21 de outubro de 1967 e o dia em que o Brasil acordou em Tropicália

21 de outubro de 1967 e o dia em que o Brasil acordou em Tropicália
21 outubro
15:09 2025

Marcelo Gonzales*

@celogonzales @vidadevinil

Lembro-me como se fosse ontem, embora eu ainda nem tivesse nascido: o Brasil vivia em preto e branco, e a televisão era um altar. Naquele 21 de outubro de 1967, o III Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record, foi mais do que um concurso de canções. Foi um terremoto sonoro, um ato de coragem, um gesto de amor à liberdade. Naquela noite, a música brasileira mudou de cor.

Os refletores da Record iluminavam um palco dividido entre a tradição e a rebeldia. As arquibancadas ferviam, divididas entre aplausos e vaias, os aplausos da esperança, as vaias do medo. E então, de repente, entrou Caetano Veloso, vestindo cores improváveis, acompanhado pelos Beat Boys, empunhando uma guitarra elétrica como quem segura uma bandeira. A música era Alegria, Alegria. As palavras, simples e subversivas:

“Caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento…”

A plateia reagiu como se assistisse à profanação de um templo. Mas o que Caetano fazia era o oposto disso: ele estava consagrando a liberdade em plena ditadura.

Logo depois, veio Gilberto Gil, com Os Mutantes, executando Domingo no Parque, em uma mistura de berimbau, guitarras, percussão e poesia. Ali, na fusão entre Bahia e rock’n’roll, nascia o embrião do movimento que ganharia o nome de Tropicália. E, entre um refrão e outro, a câmera da Record captava o espanto da plateia, os murmúrios da crítica, e o olhar luminoso de quem sabia que estava fazendo história.

Mas o festival não era apenas palco. Nos bastidores, o Brasil também fervia. Enquanto Caetano afinava o microfone e Gil ajeitava o violão, nos corredores da emissora circulavam jornalistas, produtores, censores, e um punhado de jovens artistas com brilho nos olhos. Gal Costa, ainda tímida, observava cada gesto. Maria Bethânia, irmã de Caetano, era a retaguarda emocional do grupo. Tom Zé, excêntrico e genial, articulava ideias sobre som e linguagem. Rita Lee, com os cabelos flamejantes, ria com Os Mutantes, e ninguém sabia se era rebeldia, ironia ou pura vanguarda…. Eram todos jovens, ousados, solidários. Um apoiava o outro como quem segura o mesmo sonho.

Lá fora, o Brasil vivia tempos de chumbo. A censura apertava, o medo rondava, e a juventude buscava brechas para respirar. A Tropicália foi essa brecha. Não era só música, era um movimento estético, filosófico, afetivo. Misturava a poesia concreta de Augusto de Campos, os parangolés de Hélio Oiticica, o cinema de Glauber Rocha, o deboche de Rogério Duprat, a antropofagia de Oswald de Andrade.

Era o Brasil dizendo “sim” ao caos e “não” ao conformismo.

Era a coragem de misturar bossa nova, pop, samba, psicodelia e manifesto político e ainda chamar isso de canção.

Nos bastidores da Record, contam que Caetano chorou depois das vaias. Que Gil ficou em silêncio por minutos. Que Gal o abraçou. E que ali, entre a incerteza e a dor, nasceu algo maior: a certeza de que a arte verdadeira não pede aplauso, ela pede sentido. E o sentido estava ali, vibrando no ar em um Brasil que queria cantar de outro jeito.

Quando ouço hoje o vinil de Tropicália ou Panis et Circensis, o álbum coletivo que viria no ano seguinte, sinto o cheiro de resistência e o sabor da invenção. Cada faixa é um manifesto em surdina, uma gargalhada poética contra a caretice. E percebo que aquele 21 de outubro de 1967 foi o ensaio geral da liberdade. Não uma liberdade teórica, mas uma liberdade cantada, dançada, televisiva. Uma liberdade que nos ensinou que a canção também pode ser revolução.

Dizem que o tempo apaga as coisas. Eu discordo. O tempo lapida. E ao lapidar o 21 de outubro, ele revelou o ouro de um instante em que o Brasil inteiro trocou o medo pela melodia e desde então, quando uma guitarra ecoa num palco brasileiro, ainda há algo de Alegria, Alegria e Domingo no Parque no ar.

Há a lembrança de que a arte é mais forte que o silêncio, e que a coragem de cantar fora de tom é o que mantém o país em compasso.

Naquela noite, o Brasil acordou em Tropicália. E nunca mais dormiu igual.

 *Marcelo Gonzales é autor do blog Que Dia é Hoje?, vive entre discos de vinil e muita mídia física, sempre atento à música, à cultura e ao jornalismo, compartilhando histórias que conectam gerações.

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