Diário da Manhã

domingo, 24 de novembro de 2024

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FEIRA DO LIVRO: Batuque de doces no tacho do fim do mundo

10 novembro
13:50 2015

Na Bibliotheca Pública, destaque ao lançamento dos livros “Nós cultuamos todas as doçuras” e “Os Baobás do fim do mundo”

Por Carlos Cogoy

 

Marília Kosby lançou obras de antropologia e poesia

Marília Kosby lançou obras de antropologia e poesia

               A escritora e pesquisadora Marília Kosby, esteve lançando dois livros numaprogramação com debate, música e artes visuais. Na mesa redonda, além da autora, participações de Sandrali de Campos Bueno – Yá Sandrali de Osun (Conselho de Povos de Terreiro/RS) -, Beatriz Freire (IPHAN/RS), e Flávia Rieth (UFPel). Na música, “Os Baobás do Fim do Mundo”.  O grupo conta os músicos Ricardo Petrucci (voz), Marcela Mescalina (violão e voz), Lucas Barcellos (violão de seis cordas), e Marco Antônio “Pelé” (violão de sete cordas). No repertório, poemas musicados de Marília Kosby. Alguns deles publicados no livro “Os Baobás do fim do mundo”. Marília, doutoranda em antropologia na UFRGS, além da literatura, também tem ligação com a música. Ela menciona: “Às vezes participo de festivais de música. Fui premiada pela ‘Melhor letra’ nas edições de 2013 e 2014 do Festival Canguçu da Canção Popular. Em 2013, foi a canção ‘Bestas’, parceria minha com o Ricardo Petrucci, interpretada pela Marcela Mescalina, premiada como melhor intérprete. Em 2014, foi a canção ‘Torrão’, poema meu musicado pelo canguçuense Zailor Mota, também interpretada pela Marcela, acompanhada do grupo musical ‘Os baobás do fim do mundo’, que se formou a partir da construção dessas composições e que agrega musicistas e intérpretes. Tenho parceiros compositores que me fazem a alegria de captar musicalidade nos meus poemas: o Marco Antônio “Pelé”, a Marcela Mescalina, o Ricardo Petrucci, o Zailor Mota, o Cardo Peixoto”. Outro parceiro é o artista plástico Zé Darci, que expôs telas durante a programação.

INSIGHT – Natural de Arroio Grande, Marília aos dezessete anos veio residir em Pelotas. Ela conta que o interesse pela “negritude” começou na universidade. E houve etapas nos cursos de artes visuais, jornalismo e ciências sociais. Mas, foi como bolsista de iniciação científica do “Inventário Nacional de Referências Culturais – região doceira de Pelotas e Pelotas antiga”, que se deparou com a questão étnica. No levantamento bibliográfico, a tradição doceira identificava a origem europeia. Porém, essa versão “oficial” contrastava com realidade, já que a cidade é de maioria negra. Ao perguntar sobre a presença africana e afrodescendente na tradição dos doces, a pesquisadora invariavelmente ouvia que “os negros só mexiam os tachos. Ou seja, só atuaram enquanto escravos ou serviçais e sua criatividade em nada influenciara na vida da região”. Insatisfeita com a resposta, ela teve “insight”: “Foi quando lembrei das oferendas de doces na beira da praia, que costumava ver na praia do Cassino e mesmo no Arroio Grande, principalmente na época do dia 2 de fevereiro, dia de Iemanjá”.

BATUQUE DE DOCES – Marília menciona a busca para conhecer acerca dos doces de origem afro: “Em Arroio Grande perguntei para a Ondina (Mãe Ondina Do Xangô), o que significavam aquelas oferendas nas quais predominavam quindins, mereguinhos, bem-casados, cocadas. Ela me contou que os quindins eram ofertados a Oxum, orixá que protege as gestantes, dona da fertilidade, da riqueza, da beleza, que na natureza são os rios, arroios, águas doces, mas que também recebe oferendas na beira do mar. Naquele mesmo final de semana, por indicação de Mãe Ondina, conversei com Delvir D’Iansã e a falecida Mãe Ema Do Xangô. Eles proporcionaram mais referências sobre a culinária dos orixás e seus filhos. Em Pelotas, no bairro Pestano, comecei a entrevistar Viviane D’Iemanjá. A entrevista foi um teste de paciência para ela, pois eu não conhecia absolutamente nada sobre religiões de matriz africana, achava que Batuque, ou Nação – religião de culto aos orixás – fosse o mesmo que Umbanda. Com Viviane, fui num ‘batuque de doces’.  Era festa que encerrava calendário de rituais de iniciação no Batuque. E me deparei com infinidade de doces de Pelotas nas oferendas do quarto de santo. E cada orixá recebendo doces específicos, conforme a cor a que estão associados. Fui a muitos outros batuques em Pelotas, em casas diferentes, e o culto à doçura estava sempre muito presente. Daí em 2007, defendi a monografia sobre os significados dos doces nos rituais e nos fundamentos do Batuque. A seguir, ingressei no mestrado em ciências sociais, na linha de antropologia. Minha dissertação foi sobre a construção da pessoa no Batuque em Pelotas. Nessa época, além das festas, acompanhava os rituais de iniciação”.

NOVO LIVRO “Nós cultuamos todas as doçuras: as religiões de matriz africana e a tradição doceira de Pelotas”, começou a ser escrito em 2006. Devido aos afazeres acadêmicos, a publicação levou algum tempo para ser concluída, mas havia o compromisso com o “povo de axé”, como diz Marília. Outra motivação foi a abordagem, distinta do discurso elitizado que caracteriza o enfoque da historiografia conservadora. Marília acrescenta: “A presença de frutas, flores e doces variados, como quindins, ninhos, bem-casados, doces de figo, de abóbora, de batata doce, balas e bolos, nos quartos de santo e oferendas distribuídas por locais sagrados, correspondem a um jeito de estar no mundo, pautado pela premissa de que o axé de doçura deve ser compartilhado, cultivado, recriado, frente às asperezas da vida. Pois tudo que se oferece aos orixás é o que se quer ter em retribuição: quem oferece doces quer ter tranquilidade, paz, amor, doçuras no corpo e no pensamento. A classificação do panteão dos orixás em ‘orixás de mel e orixás de dendê’ atualiza uma concepção de existência e integridade em que as dosagens de doçura e serenidade equacionam o equilíbrio necessário para se viver em uma sociedade desigual, erigida em bases escravocratas. O ‘povo do mel, ou de praia’, composto dos orixás mais velhos, os pais dos demais orixás – Oxum, Iemanjá e Oxalá -, que estão associados às forças de criação, recebem mel em suas comidas e jamais azeite de dendê; aproximá-los da amargura e do calor do azeite ativaria ‘a fervura do mel’, e com isso, potências de ira e de revolta. Já o ‘povo do dendê, ou os ‘orixás de frente’, mais jovens e enérgicos, comem azeite de dendê, mas geralmente também podem receber um pouco de mel nas suas comidas, o que não elimina sua bravura, mas confere-lhes um pouco de ponderação nos movimentos que as batalhas do cotidiano exigem, já que ‘não se pode ter só bravura na vida’”.

LITERATURA para Marília começou com a leitura dos livros da avó, também os “gibis” do pai e o acervo da biblioteca pública de Arroio Grande. Ela diz que não tinha interesse em escrever até que, já mestranda, prestou atenção no conteúdo que sonhava. A experiência onírica é que estimulou a criação poética. O primeiro livro de poemas “Os baobás do fim do mundo” é de 2011 e terá relançamento hoje. Alguns dos versos, como afirma, foram sonhados. No volume, ilustrações de Zé Darci. Na internet ela já teve espaços como o blog “Salamancas Supersônicas”, também “A sanga das patavinas”. E o periódico digital “Pandorgas no paralelo 32”. E conclui: “Posso dizer que prefiro falar poemas do que escrevê-los – tento escrever do jeito mais próximo possível da fala. Se for bom para eu falar, é bom para eu escrever. A poesia pra mim é um estado alterado de consciência, um barato”.

Marília livro.jpgLIVRO “Nós cultuamos todas as doçuras: as religiões de matriz africana e a tradição doceira de Pelotas” (Foto), foi viabilizado através da aprovação em edital do Programa Municipal de Incentivo à Cultura (PROCULTURA). No lançamento em Pelotas, também houve a participação do ‘alabê’ Eduardo D’Oxalá. Em novembro, a autora ainda autografou a obra na 61ª Feira do Livro de Porto Alegre.  A publicação é da editora Escola de Poesia.livro Marília 2.jpg

OBRA “Os Baobás do Fim do Mundo” (Foto), chegou a segunda edição. A primeira está esgotada. Marília lembra que, para viabilizar a publicação, comprometeu-se com a editora. Ela teve de agilizar a venda de 150 exemplares em quarenta dias. Para a empreitada contou com apoio do artista Zé Darci. Os poemas inicialmente foram divulgados no então blog “Salamancas Supersônicas”.

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