UFPel adota método para manejo de morcegos inédito na América do Sul
Projeto experimental poderá vir a ser replicado em outros locais, de forma a minimizar os conflitos entre morcegos e seres humanos em centros urbanos.
Prestes a iniciar a conclusão do prédio do novo aulário do Campus Capão do Leão (CCL), a equipe de trabalho da Pró-Reitoria de Planejamento e Desenvolvimento da Universidade Federal de Pelotas se viu surpreendida com uma situação a que muitos descreveriam como um problema: a estrutura já existente havia sido ocupada por uma colônia de morcegos.
A consciência do cuidado ambiental pesou, e o grupo buscou o Instituto de Biologia da UFPel para tentar saber qual seria uma alternativa mais adequada para dar prosseguimento à construção. Assim eram dados os primeiros passos para a adoção de uma iniciativa ainda inédita na América do Sul: a construção de uma estrutura específica para a acolhida dessa colônia, a chamada “casa dos morcegos”.
A edificação é inspirada nas bathouses, adotadas de forma mais comum em países do hemisfério norte. Consiste em uma construção instalada no alto, em espaço não obstruído por vegetação, que imite as condições preferidas dos morcegos: escura, protegida, úmida, fechada, com pequenas aberturas e protegida de perturbações, proporcionando um local ideal para os animais escolherem para o seu abrigo.
Como se trata de uma espécie oportunista, que habita espaços já existentes e que se adaptem a seu gosto, ao fazer um espaço que atenda às suas preferências, há praticamente certeza de que uma colônia ocupará a casa. Segundo a professora Ana Maria Rui, ligada ao Departamento de Ecologia, Zoologia e Genética do IB e docente do programa de pós-graduação em Biologia Animal, isso ocorrerá de forma gradual, conforme os animais detectem a possibilidade de uso. “Os morcegos têm essa característica de explorar o seu habitat em busca de abrigo e comida”, explica.
Foi a docente que orientou o desenvolvimento e a execução do projeto, em conjunto com o pró-reitor de Planejamento e Desenvolvimento, Otávio Peres. A construção e a instalação ficaram a cargo da Superintendência de Infraestrutura (Suinfra), que usou mão-de-obra própria da Universidade e materiais do estoque da instituição.
Coube também à Suinfra o serviço de exclusão da colônia do esqueleto do futuro aulário de forma a respeitar a espécie: conforme os animais saem à noite para buscar alimento, são vedadas as frestas ocupadas pelos morcegos; ao não encontrarem seu abrigo de costume, eles buscam outra alternativa, como a nova casa. Por isso as duas atividades devem ser realizadas de forma simultânea, conforme orientação da professora Ana.
Ela diz que ainda não é possível precisar a capacidade máxima de indivíduos que ocuparão a casa, mas que existem estruturas de tamanho menor em outros países que registram mais de 20 mil morcegos. Estima-se que entre dois e três mil ocupavam o prédio do novo aulário. Isso gera uma compensação pela exclusão dos animais do seu abrigo costumeiro.
Sinergia entre a Academia e a gestão
O pró-reitor Peres destaca que este projeto trouxe em seu cerne a união entre a demanda técnica da administração da Universidade – que precisava dar prosseguimento à construção do novo aulário – e a demanda acadêmica – de estudo e incentivo à preservação da fauna local. Tudo isso, segundo ele, para buscar uma convivência mais harmônica do ser humano e das espécies do ecossistema.
Ana explica que quase todas as edificações do Campus Capão do Leão tem alguma colônia de morcegos, por estar localizado em área com muitos banhados, que proporcionam uma farta alimentação às espécies insetívoras. Já há alguns anos, a docente mantém um projeto que monitora as colônias do local e de outros pontos fora do CCL. O prédio que abriga o Núcleo de Reabilitação da Fauna Silvestre (Nurfs), por exemplo, abriga um grupo que varia de 15 a 30 mil animais, de acordo com a estação do ano.
O sistema adotado pela UFPel é inspirado, conforme explica a docente, no escolhido pela Universidade da Flórida. Um dos prédios da instituição americana também era ocupado por uma colônia, quando sofreu um incêndio; para realizar a obra de recuperação do prédio e, ao mesmo tempo, acolher os animais, instalou a primeira de suas bathouses. Atualmente, mais duas estruturas se somam à primeira, sendo a moradia para centenas de milhares de morcegos. O local onde se encontram as casas passou a ser ponto de reunião para observadores e turistas, que contemplam, especialmente, o momento da revoada que ocorre no início de todas as noites.
Novas possibilidades para a partilha do conhecimento
A espécie que ocorre com mais frequência no Campus Capão do Leão é a Tadarida brasiliensis, chamado popularmente por morceguinho-das-casas, um velho conhecido dos habitantes de diversos centros urbanos, como Pelotas, Porto Alegre, Montevidéu e Buenos Aires; também há ocorrência em diversos outros países, como os Chile, Peru e Estados Unidos. São tadaridas, por exemplo, os morcegos que habitam as bathouses da Universidade da Flórida.
E quando a espécie é citada como velha conhecida, geralmente não é ligada a uma boa fama. A despeito da ocupação do seu habitat natural pelos núcleos urbanos, algumas espécies de morcegos se beneficiaram de certa forma da urbanização, por encontrarem nas edificações espaços de possível – e efetiva – ocupação. Por isso, são, na maior parte das vezes, identificados como pragas: ao colonizarem telhados e forros por meio de frestas causadas pela falta de manutenção ou problemas construtivos, acabam entrando em conflito com os seres humanos, que se incomodam com os seus sons e excrementos.
“Devemos desmistificar o conceito do morcego como um animal nocivo”, pontua a professora Ana. Ela explica que pesquisas apontam que a presença de colônias de morcegos em áreas de cultivo podem resultar em uma grande economia de aditivos agrícolas: somente em uma região do estado americano do Texas, mais de 700 mil dólares foram economizados anualmente durante o período analisado. Isso se dá pelo fato de a espécie ser insetívora, predando espécies cujas larvas – conhecidas como lagartas – são consideradas pragas, em culturas como o algodão ou o milho. Por isso, certas propriedades rurais investem na construção de casas de morcegos de forma a atrair colônias para os seus arredores. “Os morcegos prestam serviços ecossistêmicos”, diz a docente.
O ineditismo da experiência lançada pela Universidade Federal de Pelotas poderá ser o ponto de partida para uma nova proposta de manejo a ser replicada em outros locais, de acordo com Ana: “Estamos resolvendo o ‘problema’ da UFPel, mas vamos estudar o manejo da espécie na América do Sul”. Assim, podem ser pensadas estratégias que evitem o conflito entre os morcegos e os seres humanos, em um experimento a ser disponibilizado para a sociedade. “Estou super entusiasmada com esse projeto”, festeja a professora.