Adeus a Lô Borges
As cordas silenciam e a música permanece
Marcelo Gonzales*
@celogonzales @vidadevinil
Hoje o Brasil amanheceu com um vazio que não se traduz em palavras e que talvez nem a mais bonita melodia consiga abraçar. Perdemos Lô Borges no dia 2 de novembro de 2025 e junto dele partiu um pedaço da nossa memória afetiva, da nossa paisagem interna, do horizonte que Minas projetou para o mundo. Há despedidas que ecoam como se o tempo parasse e hoje a música brasileira parou para respirar fundo e sentir essa dor.
A notícia chega como uma nota suspensa que não resolve. Fica no ar tremendo, pedindo compreensão de algo que ainda não sabemos explicar. O país se recolhe. Quem cresceu ouvindo aquele timbre íntimo, quase confessional, sente como se tivesse perdido um amigo que sempre esteve por perto. Um amigo que falava baixinho com o coração de cada um.
Lô era assim. Um compositor de alma livre que caminhava pela vida carregando acordes como quem carrega lembranças num bolso de calça surrada. Minas sempre teve esse dom de revelar artistas que murmuram verdades suaves e profundas e ele foi um dos maiores entre eles. Um dos fundadores do Clube da Esquina, movimento que reinventou a MPB ao unir jazz, Beatles, rock, poesia universal e o ar rarefeito das montanhas mineiras. Ali, na esquina de Santa Tereza, nasceu uma revolução serena e eterna e Lô escreveu seus capítulos com a delicadeza de quem sabe ouvir o silêncio.
Quando ele cantava, a voz não vinha para impressionar. Vinha para tocar. Havia um sorriso tímido na emissão, um mundo inteiro guardado atrás daquele jeito moleque que envelheceu sem nunca perder o brilho. Era como se cada palavra carregasse uma luz discreta, capaz de iluminar memórias que nem sabíamos que guardávamos. E quando sua música encontrava os nossos dias, algo dentro da gente se ajeitava.
Seu primeiro voo foi gigante. Em 1972, ao lado de Milton Nascimento, ajudou a conceber o lendário álbum Clube da Esquina. No mesmo ano, lançou seu disco solo, aquele do tênis, o disco que virou símbolo de liberdade musical e de juventude inquieta. Um álbum que parece caminhar por ruas molhadas ao entardecer, misturando inocência e profundidade, sonho e realidade, risco e beleza. Há discos que são vidas. O dele foi isso.
Depois vieram tantas outras obras e cada uma delas carregando uma parte do seu coração generoso. A Via Láctea. Os Borges. Nuvem Cigana. Sonho Real. Meu Filme. Feira Moderna. Um Dia e Meio. Bhanda. Harmonia. Horizonte Vertical. Rio da Lua. Dínamo. Muito Além do Fim. Chama Viva. Não Me Espere na Estação.
A lista é longa, e mesmo assim insuficiente para dimensionar o impacto de sua trajetória. Cada álbum foi um recomeço. Cada canção foi um gesto de afeto.
Quem nunca parou no meio da tarde ouvindo Um Girassol da Cor do Seu Cabelo e se permitiu sentir a vida inteira em uma única frase. Quem nunca se deixou ser levado por O Trem Azul enquanto o mundo desacelerava lá fora. Quem nunca abriu uma janela real ou imaginária ao som de Paisagem da Janela. Músicas que nos acompanharam em fases, em despedidas, em viagens, em abraços, em silêncios.
Hoje as pessoas voltam a essas canções como quem retorna para casa em dia de chuva. Porque a música dele tem esse dom de aquecer. E em momentos como este precisamos desse calor mais do que nunca.
É impossível não lembrar do menino que compunha rápido, com urgência de vida, como se cada criação fosse um sopro que o universo entregava e ele apenas devolvia para o mundo. Ele dizia que algumas faixas do Clube da Esquina nasceram e foram gravadas no mesmo dia. Era inspiração que não pedia licença. Era vida que escorria pela ponta dos dedos.
E não foi só no Brasil que sua música encontrou eco. Artistas do mundo inteiro reconheceram nele uma fonte rara. Alex Turner, dos Arctic Monkeys, já confessou ter sido inspirado por sua obra. Não por acaso. Lô tinha esse toque universal e ao mesmo tempo tão nosso. Era um mineiro do mundo e um cidadão íntimo do coração de todos nós.
A notícia de sua partida trouxe comoção. Estão surgindo homenagens, memórias, palavras sentidas. Muitos lamentando profundamente a perda de um irmão musical. Outros artistas estão escrevendo, chorando, lembrando. A classe artística se recolhe para tentar entender o tamanho do silêncio que agora se abre. E nós, fãs, tentamos costurar esse vazio com música. Porque é isso que ele nos ensinou a fazer.
Hoje a cidade de Belo Horizonte parece mais baixa. Santa Tereza amanhece de cabeça inclinada. O trem azul não passa e o girassol permanece parado, tentando compreender por que a luz se recolheu tão cedo. A janela continua aberta, mas o ar entra mais devagar.
Mesmo assim, a gratidão ressoa. A obra que Lô deixa é uma bagagem infinita. É afeto guardado em acordes. É poesia que caminha entre nós. É chão e é céu. É história e é futuro. Lô não foi um artista comum. Foi um sopro divino desses que a vida nos dá de presente e depois leva de volta devagarzinho.
E nós vamos seguir ouvindo. Vamos seguir cantando. Vamos seguir olhando para o horizonte com a mesma esperança que ele sempre colocou nas melodias. Há artistas que não morrem. Há vozes que permanecem suspensas para sempre no ar. Lô Borges é uma delas.
Hoje nos despedimos com dor profunda. Mas também com amor imenso.
Que a sua música continue atravessando gerações. Que seu nome ecoe sempre nas esquinas da nossa memória.
Que sua canção nos visite todas as manhãs.
Boa viagem, Lô.
Seu trem azul agora segue um trilho que a gente ainda não consegue ver.
Mas sabemos que ele nos espera depois da curva.
E até lá, seguiremos ouvindo.
Seguindo. Sentindo.
Com gratidão eterna por tudo o que você deixou.
*Marcelo Gonzales é autor do blog Que Dia é Hoje?, vive entre discos de vinil e muita mídia física, sempre atento à música, à cultura e ao jornalismo, compartilhando histórias que conectam gerações.







