Artigo: “HOMEM MORNO”
Dom Jacinto Bergmann*
O autor do livro bíblico do Apocalipse descreve a Comunidade de Laodiceia como “morna”. O “morno” nos tempos atuais não descreve também o estilo de homem gerado pela pós-modernidade convencional? O “homem morno” é o “homem relativo” ou “homem light” da pós-modernidade. O que recolhemos do estilo do “homem-morno”?
Primeiramente temos o “eu fraco”. Num português popular, um homem “frouxo”. Ele sente como um fardo imenso a vida e as crises que ela comporta. Incapaz de manter a fidelidade às relações humanas, tanto afetivas como profissionais, rompe com eles ao primeiro embate. Suas forças falecem quando tem que enfrentar a “realidade”, quer esta tome a figura de angústia existencial, quer da presença do outro como outro, quer simplesmente das obrigações sociais e mesmo do trabalho. Perante a “dureza da vida” responde frequentemente com o drible, ou com a remoção, ou ainda com a fuga, para a qual não hesitará em recorrer às drogas, às orgias e, em situações mais extremas, ao suicídio.
Segue como fruto do homem morno a “dissolução dos laços afetivos”. É a relação humana toda que se esgarça hoje por efeito do relativismo pós-moderno. Mas é na família, de modo todo particular, que se cristalizam os efeitos niilistas do mesmo relativismo. Em primeiro lugar, as relações conjugais se tornam, em todos os sentidos, cada vez mais “informais”, para não dizer inconsistentes. Depois, os pais não se assumem mais como tais, ou seja, como educadores, guias, em suma, como mediadores de sentido. Deixaram de ser figuras de sabedoria, de lei e de ordem. Daí falar se, como muitos analistas já falam, da sociedade atual como “sociedade sem pai e mãe”.
Em terceiro lugar a pós-modernidade gera uma “vida tediosa”. Em vez da desejada plenitude, temos agora a platitude. E é lógico: sem mais contracenar com o céu, a terra tornou-se plana, chata, em suma, um deserto. Sem o sal da religião, a existência torna-se insípida. Sem a graça divina, o mundo perdeu a graça, quando não é desgraçado. Sem a poesia da fé, tudo é prosa: banal, trivial, insignificante, justamente prosaico. Sem objetivo maior, a rotina cotidiana desgasta o ânimo e o esgota. Enfim, sem Deus, a vida vira uma imensa bocejeira. De fato, o atual taedium vitae é resultado final da vontade de expulsar o Mistério que envolve e penetra o mundo.
Por fim temos um verdadeiro “amesquinhamento geral”. Tendo renunciado a medida do Absoluto, o pós-moderno torna tudo pequeno, mofino. O que pode ainda merecer o nosso amor e nossa esperança? No pós-moderno, a existência é sem cimos, mas também sem abismos. A vida é vidinha à toa. O estilo de vida pequeno-burguês, outrora desprezado, tornou-se um ideal cultural. Mas é sobretudo na esfera da mídia que isso aparece mais claramente. Os espaços de comunicação praticamente tornaram-se os novos santuários da deusa “Frivolidade”, que os antigos davam por irmã da “leviandade” e por mãe da “Inconsistência”. A virtualização da vida pode tornar a palavra meramente líquida e mesmo vaporosa, sobrando pouco espaço para a palavra grave, como são a “palavra de honra” e a “palavra de sabedoria”. A tendência da mídia vai no caminho do banalizar tudo. As realidades graves, como a ética, a moral e a religião, são tratadas com igual leviandade. “O tom do mundo consiste em falar de bagatelas como se fossem coisas sérias e de coisas sérias como se fossem bagatelas”, já sentenciou Montesquieu. Há frivolização mais fatal que a dos valores sagrados?
Há uma tarefa urgente a ser cumprida: o “eu fraco”, a “dissolução dos laços afetivos”, a vida tediosa” e o “amesquinhamento de tudo” precisam ser confrontados. Não podemos deixar o “homem morno” substituir o “homem ardoroso” criado à imagem e semelhança de Deus!
* Arcebispo metropolitano da Igreja Católica de Pelotas