Artigo: PODEMOS CORTAR O “FIO PRIMÁRIO”?
Dom Jacinto Bergmann
Os tempos secularistas atuais reproduzem com propriedade a parábola do “Fio primário”: “Conta-se que uma aranha, sem ter o que fazer, decidiu inspecionar sua teia. Depois de tê-la percorrido por inteiro, notou algo estranho: era um fio que, preso à teia, subia, subia até desaparecer. Para que serviria um fio daqueles? Melhor eliminá-lo. E zás! Cortou o fio de um golpe. E toda a teia veio abaixo, desfeita, e a aranha com ela. Tola! Aquele era o “fio primário”, do qual pendia toda a teia!”
Cortar o “fio primário” é cortar a relação com Deus. Cortar o “fio primário” é, usando a linguagem do século XX, decretar a “morte de Deus”. Romain Rolland chamou o século XX de “século deicida”. Mas, com o deicídio, continua o escritor, “era eu mesmo que se matava”. De fato, matar Deus no coração do homem é matar o que há de melhor no homem. Ao deicídio seguiu-se, pois, o “homicídio do homem em massa” e, daí, à morte do sentido da vida. Sem sentido da vida, caímos no niilismo. Pois, é em vão que se busca superar o niilismo prescindindo de Deus. Seria como apagar a única lâmpada que pode, na noite, mostrar o caminho. Seria como cortar o “fio primário”. Quem põe seu fim fora de Deus verá o “próprio fim”: só poderá encontrar “seu fim”, ou seja, “a caída de sua teia, e a si mesmo junto”.
Malraux, embora ateu, teve a honestidade de reconhecer a tragédia que significa um humanismo sem Deus, quando já em 1926 afirmava: “Morreu o homem depois que Deus morreu”. E ainda: “Que fazer de uma alma que não tem mais Deus?” E continua refletindo: Para se encontrar a si mesmo, o homem abandonou a Deus. Mas o que encontrou? Imensos corredores de angústia e solidão, o absurdo e a decadência. É como o cavaleiro que vence o adversário, mas quando entra no palácio de seus sonhos, só encontra sombras.
Uma antropologia puramente autofundada prepara paradoxalmente sua autodestruição. O homem se torna um simples lugar, encruzilhada de condicionamentos impessoais, de tal modo que não se pode mais dizer que aí “alguém faz algo”, mas somente que aí “acontece algo”. Aqui o ser humano termina totalmente despersonalizado, despido de um verdadeiro “eu”, para tornar-se mero objeto. É a proclamação do niilismo antropológico, resultado direto da eliminação do Transcendente.
Uma forma mais recente de niilismo antropológico é a que está ligada à ideia de “pós-humano”. Trata-se de uma visão do mundo, que, apoiando-se na biotecnologia, acredita que o gene explica tudo: sexo, inteligência, moral, política… Através das inovações técnicas, especialmente sobre a estrutura biológica do homem, entende-se libertar o próprio homem da condição humana ou seja, “superar” o “humano” do homem, reduzindo-o ao biológico, mais especificamente, ao genético. O homem não será mais “alguém”, mas “algo” de biológico, uma “função” específica, uma “matéria” a modelar. A partir dessa antropologia inquietante, são compreensíveis as tentativas da moderna biotecnologia de produzir embriões de proveta, de reciclar órgãos de um cadáver, de clonar seres humanos, de estocar células tronco extraídas de embriões e até de propor um “criatório” humano para produzir uma nova raça. Na verdade, por trás dessas ideias opera uma visão antropológica de corte animalista, que não tem mais nada de antropologia, mas apenas de zootecnia aplicada ao homem.
Eis aí termos mais um resultado monstruoso a que se chega quando se trata o ser puramente imanente, fechado, e não mais como pessoa, ser espiritual, feito à “imagem e semelhança” de seu Criador e aberto a Ele. O crepúsculo de Deus antecipa e arrasta o crepúsculo do homem. Uma visão do homem que não esteja calçada em Deus não consegue neutralizar o perigo niilista. Essa é também a grande lição bíblica: já as primeiras passagens da Bíblia mostram que, quando a relação teologal cede, cede também, mais cedo ou mais tarde a relação social. Deus é ainda o melhor cimento social. Tem razão Daniel Bell quando sentencia: “Dizer que Deus está morto é dizer que a sociedade está morta”. Cortou-se o “fio primário”!