Combate ao Trabalho Escravo: reflexões sobre uma chaga social que ainda atinge o país
Neste domingo, 28 de janeiro, foi celebrado o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo
Ele faz alusão a um crime ocorrido em 2004, quando três auditores fiscais do Trabalho e um motorista foram assassinados enquanto faziam inspeções para apurar denúncias de trabalho escravo em Minas Gerais. A data foi instituída no Brasil como um marco que provoca reflexões sobre o direito ao trabalho digno e o enfrentamento de um grave problema que segue atingindo a sociedade contemporânea.
Em 2023, o Ministério do Trabalho e Emprego resgatou 3.190 trabalhadores em condições análogas à escravidão no Brasil. O Rio Grande do Sul ficou em quarto lugar no ranking dos Estados, registrando 334 resgates. Na avaliação do desembargador Manuel Cid Jardon, gestor regional do Programa Nacional de Enfrentamento ao Trabalho Escravo no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (RS), o número de resgates poderia ser maior, porque nem sempre os casos são denunciados e a estrutura para enfrentá-los é insuficiente. “É preciso lutar contra o sucateamento da fiscalização laboral e impedir retrocessos conceituais quanto à configuração do trabalho escravo”, reflete o magistrado.
Caracterização do trabalho escravo
A legislação brasileira define o trabalho análogo à de escravo no artigo 149 do Código Penal. Ele se caracteriza pela submissão de alguém a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, sujeitando a pessoa a condições degradantes de trabalho ou restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. Também incorre na pena prevista para este crime quem, com a finalidade de manter o trabalhador no local de trabalho, cerceia o uso de qualquer meio de transporte, mantém vigilância ostensiva, ou se apodera de seus documentos ou objetos pessoais.
“A escravidão ocorre quando o trabalhador é coisificado, tratado como mercadoria, sem liberdade de reger seu próprio destino em virtude da supressão dos direitos mínimos trabalhistas”, destaca o desembargador Manuel Jardon. O magistrado acrescenta que a escravidão deve ser combatida com base nos instrumentos normativos dos direitos humanos, nos princípios da dignidade humana e da valorização do trabalho, e também a partir do Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.
O juiz do Trabalho Charles Lopes Kuhn, também gestor regional do Programa de Enfrentamento ao Trabalho Escravo, observa que a permanência deste problema social provocou a criação de diversas normas para enfrentá-lo. Entre elas, menciona a convenção da Assembleia da Liga das Nações editada após a Primeira Guerra com o objetivo de promover a abolição da escravidão, as convenções da Organização Internacional do Trabalho que tratam do trabalho forçado ou obrigatório, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969. “Mesmo que a abolição da escravidão ‘legal’ em nosso país tenha ocorrido ainda no final do século XIX, resta claro que não apenas em nosso país, como em todo o mundo, tem sido recorrentemente verificada a adoção de práticas semelhantes, gerando a necessidade de sucessivas previsões no âmbito jurídico”, avalia.
Conscientização
Para um enfrentamento efetivo do trabalho escravo, o desembargador Manuel Jardon afirma que é necessário conscientizar a sociedade sobre essa responsabilidade e estabelecer estratégias de atuação operacional integrada dos órgãos do Executivo, do Judiciário e do Ministério Público. Além disso, destaca que é importante aprimorar o plano nacional de erradicação e promover uma campanha de conscientização, sensibilização e capacitação. “Também é necessário divulgar o tema na mídia local, regional e nacional, e intensificar, mediante políticas públicas, o combate à violação dos direitos humanos, além de fortalecer a estrutura da fiscalização do trabalho”, declara.
O juiz Charles Kuhn também defende a importância de campanhas de conscientização que tragam mais visibilidade para a recorrência desses crimes e demonstrem as circunstâncias que devem servir de alerta para identificar possíveis casos. Ele acrescenta que é necessário o reforço da cadeia de assistência e fiscalização para evitar que as vítimas resgatadas retornem às condições análogas à escravidão, além de mais investimentos em políticas de erradicação da miséria e redução da desigualdade. “Há obstáculos práticos e objetivos, e outros de ordem cultural e ética, cuja superação passa pela necessária retomada de uma consciência mais ampla quanto às mazelas da sociedade que nos rodeia, a qual jamais se consolidará em bases justas e equânimes enquanto convivermos com inaceitáveis formas de exploração e aviltamento de seres humanos”, avalia.
Casos na esfera trabalhista
Os casos de trabalho escravo são tratados nas esferas criminal e trabalhista. Na parte criminal, cabe à Justiça Federal julgar os fatos investigados pela Polícia Federal (PF) e pelo Ministério Público Federal (MPF). Na esfera trabalhista, os casos são conduzidos inicialmente pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). Se não forem resolvidos por esses órgãos extrajudicialmente, caberá à Justiça do Trabalho julgar os fatos quando uma ação for ajuizada.
Teve grande repercussão, em fevereiro de 2023, o resgate de mais de 200 trabalhadores encontrados em condições precárias de alojamento em Bento Gonçalves. Os empregados haviam sido trazidos, em maior parte, da Bahia para o Rio Grande do Sul, para trabalhar na colheita da uva na Serra Gaúcha. O resgate foi fruto de uma ação conjunta do Ministério do Trabalho e Emprego com o Ministério Público do Trabalho, a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal.
Em março de 2023, o juiz Silvionei do Carmo, titular da 2ª Vara do Trabalho de Bento Gonçalves, determinou o bloqueio de bens de nove empresas e dez pessoas envolvidas no caso. O magistrado acatou pedido liminar em ação civil pública ajuizada pelo MPT. Ao analisar as evidências trazidas no pedido, o juiz verificou elementos de conduta ilícita das empresas, “no sentido de se aproveitar da mão de obra dos trabalhadores, não apenas de forma irregular, mas também em condições análogas ao trabalho escravo”.
A primeira sentença em processo individual envolvendo um trabalhador resgatado no caso das vinícolas foi publicada na última semana, dia 15 de janeiro. A decisão do juiz Silvonei do Carmo, da 2ª Vara do Trabalho de Bento Gonçalves, destacou que “não havia as mínimas condições de conforto e higiene na Pousada do Trabalhador”, que a “alimentação não era fornecida em condições e ambientes adequados”, e que a jornada de trabalho era exaustiva. Duas empresas terceirizadas e uma vinícola tomadora do serviço foram condenadas a indenizar o trabalhador em R$ 50 mil por danos morais. Ele também deverá receber o pagamento de horas extras, com incidência de adicional e reflexos em outras verbas trabalhistas, além das horas faltantes para completar o intervalo entre jornadas previsto na CLT.
Outro caso emblemático ocorreu em março de 2023, quando 85 trabalhadores foram resgatados em condições degradantes em duas fazendas no interior de Uruguaiana, em uma ação conjunta entre MPT, MTE e PF. Eles cumpriam jornadas extenuantes fazendo o corte manual do arroz vermelho e a aplicação de defensivos agrícolas sem equipamentos de proteção individual.
A empresa tomadora dos serviços das fazendas colaborou para a resolução do caso. O MPT firmou um termo de ajuste de conduta (TAC) com a empresa para o pagamento dos danos morais individuais dos trabalhadores, que chegaram a um total de R$ 2 milhões. Pelo acordo, a empresa ainda destinou R$ 6,5 milhões para ações sociais e custeou a aquisição de uma caminhonete que será usada pelo MTE em ações de fiscalização de trabalho escravo na região. O TAC foi firmado pelo procurador do MPT Hermano Martins Domingues e homologado judicialmente pela juíza do Trabalho Laura Antunes de Souza, da 1ª Vara do Trabalho de Uruguaiana
O MPT também garantiu, junto às fazendas responsáveis pela colheita e contração dos trabalhadores, o pagamento dos valores rescisórios, que chegaram a um total de R$ 365,5 mil. Além disso, os empregados foram encaminhados à assistência social e ao Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest) para realização de exames médicos, inserção em programas de qualificação profissional e de assistência social.
Programa de enfrentamento
Em outubro de 2023, a Justiça do Trabalho lançou o Programa de Enfrentamento ao Trabalho Escravo, ao Tráfico de Pessoas e de Proteção ao Trabalho do Migrante. Ele é um complemento das ações previstas na Política Judiciária Nacional de Trabalho Decente, instituída em agosto do mesmo ano. O objetivo do programa é desenvolver ações permanentes sobre o tema.
Na cerimônia de lançamento do programa, o presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e do Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT), ministro Lelio Bentes Corrêa, destacou que a iniciativa reitera o papel da Justiça do Trabalho como garantidora da cidadania e do trabalho decente, com ações concretas e eficazes. “Ao Estado brasileiro, que historicamente vem investindo no sequestro, no tráfico, na escravização e no genocídio da população negra, cabe a formulação urgente e prioritária de políticas públicas eficazes de reparação, garantindo efetivamente cidadania e trabalho decente para essas pessoas”, declarou.
Seminário debaterá caminhos para a erradicação do trabalho escravo
O combate ao trabalho escravo será tema de um seminário em Bento Gonçalves, na serra gaúcha, de 26 a 28 de fevereiro. Entre seus palestrantes, o evento contará com o presidente do Tribunal Superior do Trabalho, ministro Lelio Bentes Corrêa, o diretor do escritório da Organização Internacional do Trabalho para o Brasil, Vinícius Carvalho Pinheiro, e o jornalista e cientista político Leonardo Sakamoto. As inscrições são gratuitas e estão abertas ao público em geral até as 12h do dia 5 de fevereiro, neste link. As vagas são limitadas.