O samba, o traço e a eternidade
O samba não é de ninguém, mas é de todos que ainda acreditam que a arte pode curar o tempo
Marcelo Gonzales*
@celogonzales @vidadevinil
Há datas que não apenas marcam o tempo: elas o redesenham. 27 de outubro é uma dessas. Em 2023, Zeca Baleiro escolheu esse dia para lançar o álbum O Samba Não É de Ninguém, e, sem saber, ou talvez sabendo com o instinto dos artistas que carregam o Brasil dentro, fez dessa data um reencontro entre som, memória e traço. A capa do disco foi assinada por Elifas Andreato, artista que já não estava entre nós, mas cuja presença continua a desenhar o rosto da música brasileira.
É impossível olhar para a capa e não sentir o gesto de Elifas, o Brasil profundo, o povo em forma de cor, a mão que pintava com indignação e ternura. Elifas nunca foi um ilustrador decorativo. Era um cronista do país em imagens. Cada disco que tocava, ele transformava em manifesto, como se o som precisasse ser visto para ser sentido por inteiro. E agora, mesmo depois de sua partida, sua arte reaparece como quem não aceita o silêncio.
Zeca Baleiro, por sua vez, sempre teve essa habilidade rara de juntar as pontas da canção brasileira. O Samba Não É de Ninguém é mais que um álbum: é uma declaração. É o gesto de um artista que, depois de tantos caminhos, decide se entregar a um gênero que sempre o espreitou, mas que ele adiava enfrentar de frente. O samba, aqui, não pertence a ninguém, porque é de todos, e de todos os tempos. Zeca canta com respeito e reinvenção, com a serenidade de quem sabe que tradição não é prisão, é passagem.
E há algo de profundamente simbólico no fato de essa capa ser uma das últimas obras de Elifas Andreato. O homem que deu rosto a tantos discos de Chico Buarque, Paulinho da
Viola, Martinho da Vila, Elis Regina e tantos outros, agora sela seu nome numa obra que respira o mesmo ar desses mestres. A arte visual e a arte sonora se reencontram, e o Brasil, por um instante, volta a ser essa coisa viva e contraditória que Elifas tanto pintou: alegre e sofrida, esperançosa e ferida, mas sempre pulsante.
Pery Ribeiro, nascido também em um 27 de outubro, lá em 1937, talvez sorrisse desse acaso bonito. Porque ele foi a primeira voz de Garota de Ipanema, e sabia o que era ser o primeiro a dar som a um sentimento coletivo. A data de seu nascimento e o lançamento deste álbum de Zeca Baleiro formam uma ponte: a herança e a reinvenção, o ontem e o agora.
O samba não é de ninguém, mas é de Elifas. É de Pery. É de Zeca. É do povo que canta sem saber de onde vem o canto. É do Brasil que, mesmo cansado, ainda encontra um motivo para girar o disco e ouvir de novo o som de sua própria alma.
*Marcelo Gonzales é autor do blog Que Dia é Hoje?, vive entre discos de vinil e muita mídia física, sempre atento à música, à cultura e ao jornalismo, compartilhando histórias que conectam gerações.







