Schizophrenia, silêncio e um 30 de outubro entre criação e partida
30 de outubro, lançamento de Schizophrenia e morte de Jam Master Jay
Marcelo Gonzales*
@celogonzales @vidadevinil
Há datas em que o tempo parece se partir em dois. Como se o mundo respirasse vida e morte na mesma inspiração. Como se o som e o silêncio resolvessem, num pacto secreto, dividir a posse de um mesmo dia. O dia 30 de outubro é um desses. De um lado, o nascimento de Schizophrenia, o álbum do Sepultura que redefiniu o metal brasileiro e projetou o país na geografia sonora do mundo. De outro, a morte brutal de Jam Master Jay, o DJ que ajudou a fundar o hip hop moderno e que viu sua história interrompida no estúdio, no Queens, em 2002. Entre um e outro, um mesmo fio de som que se rompe e renasce. Uma mesma sensação de desordem, de mente dividida, como se a própria música tivesse sido acometida por uma espécie de esquizofrenia coletiva.
Penso em Schizophrenia como um grito. Um grito que saiu de Minas Gerais e ecoou pelo planeta inteiro. Gravado no estúdio J.G. em Belo Horizonte, lançado em 30 de outubro de 1987 pela Cogumelo Records, o disco marcou a chegada de Andreas Kisser, a consolidação de uma formação que unia Max e Igor Cavalera, Paulo Jr. e uma fúria que o mundo ainda não sabia decifrar. A crueza das guitarras, os vocais em transe, o peso ritualístico das baterias, tudo em Schizophrenia parecia cuspir contra qualquer forma de contenção. Era a mente brasileira dizendo ao mundo: “estamos aqui, e não pedimos licença para existir”.
O vinil original vinha com um encarte que mais parecia um espelho quebrado, desenhos distorcidos, rostos, símbolos, fragmentos. A própria capa já era um manifesto visual, uma representação da confusão interna, do caos que habita cada criação. Talvez por isso o nome tenha sido tão certeiro. Schizophrenia, ou, no nosso idioma, esquizofrenia, não apenas como transtorno mental, mas como estado de alma, de quem sente o mundo de modo dilacerado, misturando dor e beleza, sanidade e fúria. E o disco era exatamente isso: um colapso criativo, um delírio controlado pela precisão dos riffs.
O álbum não trouxe prêmios imediatos, não figurou nas paradas de forma avassaladora, mas trouxe algo que valia muito mais, que se chama respeito. Os críticos estrangeiros começaram a olhar para o Brasil com outro tipo de curiosidade. O som que saía de Belo Horizonte tinha textura, tinha verdade. E nós, brasileiros, sentimos orgulho, um orgulho puro, daquele tipo que não se explica, apenas se sente. Era o sentimento de pertencimento a uma cena mundial que, até então, parecia inalcançável. Era o Brasil erguendo a cabeça e dizendo, entre distorções e gritos: “também sabemos fazer história”.
Enquanto isso, o outro 30 de outubro, o de 2002, seria o oposto exato desse nascimento. Jam Master Jay, o DJ que revolucionou a forma de tocar e entender o hip hop, foi assassinado dentro de seu estúdio em Nova York. Jason Mizell, seu nome de batismo, tinha 37 anos e deixava para trás um legado que moldou gerações. Foi ele quem deu forma ao som da Run-D.M.C., quem colocou a batida do DJ como protagonista e não como pano de fundo. Sua morte foi um golpe seco. E a notícia se espalhou como um silêncio ensurdecedor.
Não quero transformá-lo em herói. Não quero canonizá-lo como mártir. Havia rumores, na época, sobre envolvimentos obscuros, negócios errados, disputas e dívidas. Mas o que me interessa aqui é o impacto cultural e emocional do que se perdeu. Porque, naquele instante, o hip hop ficou sem chão. O cenário urbano norte-americano viveu um curto-circuito de sentimentos, de incredulidade, raiva, tristeza, confusão. Russell Simmons, cofundador da Def Jam, disse em nota pública: “Perdemos um dos arquitetos do nosso som. Perdemos um irmão, e o silêncio agora é pesado demais.” Outros artistas, de LL Cool J a Chuck D, expressaram o mesmo atordoamento, a mesma sensação de que o gênero havia perdido o próprio eixo.
Uma testemunha ocular, Uriel Rincon, relatou ao tribunal anos depois: “Eu olhei e vi Jay cair. Tentei segurar o ferimento, mas ele já não respondia.” Outro depoimento, de Yarrah Concepcion, foi ainda mais duro: “Eu sabia que ele se fora. Só pude tentar ver se ainda respirava.” A brutalidade do ato dissolveu a fronteira entre arte e tragédia. E o hip hop, tão acostumado a transformar dor em poesia, dessa vez pareceu paralisado.
É aqui que a metáfora da esquizofrenia volta a fazer sentido. A esquizofrenia clínica é um distúrbio que fragmenta o pensamento, embaralha percepções, altera a ligação com a realidade. Pois foi assim que o meio musical se sentiu naquele 30 de outubro, sendo dividido, desorientado, afetado. De um lado, o metal brasileiro em plena afirmação; do outro, o hip hop americano em colapso emocional. Uma data bipolar da história da música, um lado gritando, o outro silenciado, mesmo com a diferença de anos…
Nos dias que se seguiram, fãs do Sepultura celebravam com euforia o nascimento de uma obra que, aos poucos, ganharia status de culto. Fãs de Jay, por outro lado, acendiam velas, cantavam seus refrões e tentavam entender por que o destino havia desligado o toca-discos no meio da festa. Os dois mundos, tão diferentes, vibravam sob o mesmo céu, numa espécie de sinfonia dissonante entre o orgulho e o luto.
Hoje, quase quatro décadas depois do lançamento de Schizophrenia, percebo que o álbum continua reverberando como um manifesto de resistência. Max e Igor Cavalera regravaram-no em 2023, trazendo nova energia, nova leitura, como se o passado exigisse sempre um recomeço. O disco segue vivo, ensinado em riffs o que significa nascer à margem e conquistar o centro.
Já o nome de Jam Master Jay sobrevive em forma de legado, não de santificação, mas de técnica, de influência. DJs do mundo inteiro ainda copiam seus cortes, estudam seus movimentos de scratch, reverenciam sua presença no palco. É o tipo de imortalidade que não se conquista com discursos, mas com som. O hip hop moderno ainda o carrega, mesmo sem o colocar num pedestal. Ele permanece como parte da fundação, da argamassa invisível que sustenta o gênero.
Quando olho para esse 30 de outubro, sinto que a história quis me ensinar uma lição dura: o som e o silêncio são partes de uma mesma melodia. Schizophrenia nasceu do caos criativo, Jam Master Jay morreu dentro de um estúdio, vítima de outro tipo de caos. E eu, espectador distante, fico com a impressão de que a música é feita de extremos, de pulsações e pausas, de nascimentos e ausências.
Não precisamos escolher entre o aplauso e o luto. Ambos cabem no mesmo coração. Podemos celebrar o disco que elevou o nome do Brasil e, ao mesmo tempo, respeitar o silêncio que se abateu sobre o hip hop. Porque, no fundo, cada nota tocada e cada batida interrompida fazem parte da mesma sinfonia humana.
E é por isso que eu digo que o 30 de outubro não é apenas uma data no calendário da música, é uma cicatriz. Uma cicatriz que fala. Que canta. Que ainda dói. Mas que, como toda ferida sonora, continua ecoando.
*Marcelo Gonzales é autor do blog Que Dia é Hoje?, vive entre discos de vinil e muita mídia física, sempre atento à música, à cultura e ao jornalismo, compartilhando histórias que conectam gerações.







