Professor mistura literatura e matemática para estimular a criatividade dos estudantes
Como que num passe de mágica, o exótico jogo de quadribol se transporta de um dos trechos do livro “Harry Potter e a Pedra Filosofal” e vai parar nas fórmulas matemáticas cuidadosamente rascunhadas em um quadro negro. Não, definitivamente não se trata de bruxaria.
A cena inusitada tem a ver com a nova proposta de trabalho do professor Rafael Montoito para as aulas ministradas por ele no IFSul-câmpus Pelotas. A ideia vem dando tão certo que, em 2015, deve se transformar em um projeto de extensão que vai unir literatura e matemática em uma atividade que promete dar o que falar.
No livro da escritora britânica J. K. Rowling, o quadribol é um esporte jogado com vassouras voadoras. Deixando um pouco a ficção de lado, o jogo pode ser um exemplo bem real para ilustrar as aulas sobre o cálculo de áreas. Pelo menos, foi isso que fez o mágico, ou melhor, o professor Rafael Montoito, 36 anos, em um de seus encontros com turmas de cursos técnicos.
“Utilizei o trecho que descreve o jogo para calcular a área do campo de quadribol, utilizando integral de linha, um conteúdo da disciplina de Cálculo II, muito comum nas engenharias. Uma prova de que, sabendo pesquisar, se consegue achar atividades para todos os níveis”, explica.
Ele conta que tudo começou a partir de seus estudos de mestrado e doutorado, nos quais trabalhou muito com as obras de Lewis Carroll, escritor britânico autor de “Alice no País das Maravilhas” e um brilhante matemático, que chegou a lecionar em uma conceituada escola de Oxford, na Inglaterra. A proposta desenvolvida durante as pós-graduações foi apresentada recentemente por Montoito em um congresso latino-americano de educação matemática, realizado na Colômbia.
FOI A PAIXÃO pelos livros que levou o professor do câmpus Pelotas a pensar na estrutura de linguagem e literatura e como passagens presentes em diversas obras poderiam enriquecer e auxiliar suas aulas. Ele ressalta que alguns livros podem apresentar uma matemática bem explicita, com trechos que ilustram especificamente figuras geométricas, termos e operações matemáticas, muitos deles já bastante conhecidos pelos alunos, fato que torna a abordagem mais clara. Outros dão apenas uma ideia, e é aí que entra o trabalho do professor, cuja missão é traduzir palavras em linguagem matemática.
“Tenho trabalhado esta proposta com algumas turmas, normalmente quando o conteúdo ministrado se encaixa em algum trecho de um livro lido. A partir daí, crio atividades extras ou até mesmo questões de prova, para os alunos terem que pensar em algo diferente”, diz Montoito, que já conseguiu trabalhar com estudantes assuntos como matrizes, geometria espacial, limites, entre outros.
“O Pequeno Príncipe”, do escritor francês Antoine de Saint-Exupéry, é um dos preferidos de Montoito para trabalhar sequências numéricas em sala de aula, por ser um livro bastante conhecido pelos alunos. “Foi aplicado numa prova, inclusive”, lembra o professor. Os exemplos não param por aí. Com “As viagens de Gulliver”, abordou a geometria de uma forma bastante inovadora, através de um trecho que detalhava uma refeição, na qual os pratos servidos são apresentados em forma geométrica. A adaptação foi o grande trunfo de Montoito, que conseguiu aproveitar a passagem para associar as figuras apresentadas com a parte de cálculos, não mencionada na obra.
O “Símbolo Perdido”, de Dan Brown, serviu de cenário para as aulas de sistemas lineares. Neste caso, foi explorado o contexto que envolveu a solução do enigma de um quadrado mágico, um passatempo matemático muito conhecido, segundo Montoito. Já em “O restaurante no fim do universo”, da quadrilogia “O Guia do Mochileiro das Galáxias”, trabalhou a temática limites no infinito. Na lista, é claro, não poderia faltar Lewis Carroll. Com base nos poemas do renomado escritor, Montoito teve a inspiração necessária para transformar versos em uma aula sobre matrizes.
OUTRA PERSPECTIVA
Rafael Montoito prefere não polemizar sobre as possíveis causas que levam os estudantes a elegerem a matemática como uma das disciplinas mais temidas. No entanto, aponta o ensino deficitário nas séries iniciais como um dos vilões que contribui não só para a fama ruim da própria matemática como também para a de outras. “Acho que a matemática fica muito mais em evidência do que as outras disciplinas por ter uma linguagem, uma estrutura de algoritmos específica que pode causar um certo pânico entre os alunos”, comenta.
Por isso, em algumas de suas aulas, ele procura desmitificar este “bicho de sete cabeças”, que atende pelo nome de matemática, através da literatura. No início, os alunos são tomados por um sentimento de surpresa, já que não se trata de uma abordagem convencional. Depois, conforme o professor, eles são contagiados, gostam e até sugerem trechos de livros que leram. “Essa proposta mexe muito com a criatividade e possibilita aos alunos uma outra observação do mundo científico. Aí estão embutidos outros ganhos que transcendem a sala de aula”, avalia.
Aluna do curso técnico e da Engenharia Química, Estefani Tavares Jansen aprovou a atividade. Ela conta em detalhes, por exemplo, sobre a aula em que foi utilizado o trecho do jogo de quadribol, de “Harry Potter e a Pedra Filosofal”, e confirma que o rendimento dos alunos naquele dia foi bem superior, sem falar no fator concentração, que, segundo a estudante, aumentou muito.
“Através da utilização da temática Harry Potter, o professor conseguiu prender a atenção de toda turma em um exercício, não porque impôs esta condição, mas porque estávamos interessados em aprender. Lembro até hoje que esta aula tratava sobre o conteúdo elipse, e o exercício era constituído de um pequeno texto introdutório, uma figura para ilustrar a situação e, por fim, a questão matemática. Não foi apenas mais um exercício normal, foi um exercício diferente, que fica na memória do aluno”, recorda.
Estefani ainda teve a oportunidade de participar de outros momentos em que foram aplicadas atividades envolvendo literatura e matemática. Para ela, aulas assim funcionam como uma espécie de estimulante, já que rompem com o tradicional e aproximam fórmulas até então complicadas de situações muito presentes no cotidiano dos alunos.
“Seria interessante que esta união da literatura com a matemática se tornasse mais comum em nossas aulas. Talvez os futuros engenheiros do câmpus, tanto os químicos quanto os elétricos, não ‘brigassem’ tanto com a geometria analítica”, brinca Estefani.
Montoito acredita que exemplos de aplicação matemática são sempre bem-vindos para o enfrentamento de possíveis dificuldades que os estudantes venham a ter em relação à disciplina. Contudo, adverte para o fato de que a escola não é somente aplicação, mas também funciona como um espaço que oportuniza o pensamento e o conhecimento da ciência. “Na escola, os estudantes têm a possibilidade de entrar em contato com tudo aquilo que a humanidade produziu até o momento, de mostrar o que se pode fazer e os leques que se abrem”, observa.
O professor ressalta que boa parte dos alunos hoje está preocupada apenas com o imediatismo, ou seja, aprender determinado conteúdo para usá-lo em algo específico. Ele teme que o processo de reduzir a sala de aula apenas à aplicabilidade pode levar a gerações pouco criativas. “Desta forma, a ciência não se desenvolverá mais. Nunca é demais lembrar que o conhecimento deve ser sempre maior que aplicação. Podendo ser utilizado ou não, o conhecimento sempre é bem-vindo”, pondera.
EXTENSÃO
Com a ajuda da professora Graça Peraça, Montoito pretende tirar do papel o projeto de extensão que está sendo batizado de Clube de Matemática e Literatura. Os dois já estão lendo o “Teorema do Papagaio” e trabalhando com um grupo pequeno de alunos do ensino médio. As atividades extras são realizadas todas as quartas-feiras pela manhã, em caráter experimental, com o objetivo de avaliar o rendimento da obra no processo de ensino e aprendizagem. Para 2015, a ideia é recrutar um número maior de interessados em ler o livro e trabalhar questões práticas.
Escrito pelo francês Denis Guedj, o “Teorema do Papagaio” é um livro que traz toda a história da matemática, desde a antiguidade até o século passado. O papagaio que protagoniza a obra esconde um mistério, o qual o professor Montoito não revela nem sob tortura, pelo menos por enquanto. A obra apresenta uma linguagem clara, considerada adequada para adolescentes. “O ´Teorema do Papagaio´ é para a matemática o que o ´Mundo de Sofia´ é para a literatura”, compara o professor.
Para o Clube de Matemática e Literatura, o escritor Lewis Caroll não deve ser o carro-chefe. A proposta é trazer obras de outros autores para diversificar o trabalho. O projeto deve começar com seis alunos, número considerado ideal pelos organizadores para o bom desempenho da atividade. Interessados em participar desta iniciativa já podem procurar o professor Rafael Mantoito no câmpus Pelotas, na Coordenadoria da Área de Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias (Cinat).