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segunda, 25 de novembro de 2024

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MULHERES NEGRAS : Aula inaugural com histórias, saberes, dores e sabores

MULHERES NEGRAS : Aula inaugural com histórias, saberes, dores e sabores
02 maio
09:19 2018

Numa iniciativa inédita na UFPel, a aula inaugural da Faculdade de Educação reuniu os relatos de quatro mulheres negras

Por Carlos Cogoy

Ela perguntou ao público que lotou o auditório do Centro de Artes (CEARTES/UFPel), quinta à noite, quem se autodeclarava negro. Boa parte do público, ergueu o braço. A liderança negra Luciana Custódio – preside o Conselho Municipal da Mulher -, então, contrastou a manifestação atual com período recente. Segundo ela, até pouco tempo, se houvesse a pergunta, talvez ninguém se identificasse como negro ou negra. O motivo para entender essa mudança, é que a comunidade negra cada vez conquista mais voz e espaço. Mas, embora tenha aumentado a autoestima, ainda são inúmeras as adversidades decorrentes do racismo. Para a superação, além do viés jurídico, ações afirmativas e políticas públicas, a educação é crucial. Porém, em sala de aula, ainda são poucas as referências à comunidade negra. Como exemplo, o número de docentes negros no ensino superior. De acordo com a professora dra. Georgina Lima (FaE/UFPel), do total de 1.494 professores na UFPel, apenas vinte são negros. Destes, somente oito são mulheres.

Diante dessa brutal desigualdade, a doutoranda Raquel Silveira (FURG), afirmou que é preciso “enxergar seus pares: na cor da pele, nas histórias de vidas partilhadas, com muitas experiências semelhantes e outras não tão semelhantes assim, e que também irão nos constituir como mulheres negras e homens negros, jovens negros”. Já a professora Marielda Barcellos Medeiros – doutoranda em antropologia na UFPel -, ressaltou o quanto a ancestralidade deve ser respeitada pois, na cultura negra, permite a todos o direito de se manifestar, e não aceita discriminação. Exemplificando a dimensão da religião de matriz africana, mencionou a luta da vereadora Marielle Franco (PSol), assassinada no Rio de Janeiro a 14 de março, que era mulher negra, lésbica e filha de Oyá. No dia 26, Georgina, Marielda, Raquel e Luciana, protagonizaram um encontro inédito na UFPel. Sob a coordenação do professor Rogério Würdig, elas proferiram a aula inaugural da Faculdade de Educação.

COLETIVOS NEGROS – Na escola ela se acomodava ao fundo, escondendo-se pois não queria ser vista. Mas, aluna da professora Maritza Freitas, foi convidada para trocar de lugar, e passou a sentar na frente. Posteriormente, integrou-se às aulas de dança da professora Maritza no Colégio Pelotense. Através da corporeidade, encontrou seu lugar de expressão, passando também a refletir e verbalizar sobre as questões étnico-raciais. Na aula inaugural na UFPel, Raquel mencionou sobre o surgimento do grupo Odara que, através da dança e percussão, valoriza a arte e cultura negra há quase vinte anos. E recordou pelotenses como Giba Giba, que idealizou o projeto “Cabobu”, integrando os “tambores do sul aos tambores do mundo”, bem como a escritora Maria Helena Vargas da Silveira que, entre os doze livros publicados, um deles é intitulado “Odara – Fantasia e Realidade” (1993). Raquel cursou educação física, fez o mestrado na Faculdade de Educação, lecionou no ensino superior, e atualmente é doutoranda na FURG.

Ela lembrou conceito de autoria do companheiro Miguel Dias, professor, poeta e pesquisador, prematuramente falecido no dia do professor ano passado, que formulava “negros e negras em movimento”, dimensionando como saber também a corporeidade, inserção e vivências. A doutoranda acrescentou: “Dançar me fez falar. O corpo negro vive a diáspora no cotidiano.

Luciana Custódio

Luciana Custódio

Entre dandaras e odaras, somos corpos negros contadores de histórias. Não esqueçamos os que vieram antes de nós. E, para incomodar o senhor da casa grande, queremos a escritora Conceição Evaristo na Academia Brasileira de Letras”. Raquel também expressou: “Uma vida diferente, a partir da arte a possibilidade de ativar o pensamento. Provocar, inquietar as pessoas sobre as questões étnico-raciais, as questões da vida, do mundo, da humanidade. Um corpo político. Todas a vezes que tentam nos dizer os lugares que podemos estar, vivemos situações constantes de enfrentamento, racismo, preconceito e discriminação, seja na escola, trabalho, rua, espaços artísticos, em diferentes locais”.

ENCONTRO COM ELA foi o poema de Marielda Barcellos Medeiros, lido pela autora no evento. Nos versos: Hoje encontrei com ela/ Minha rainha, a mais bela/ Me esperava gigante, imponente/ Meu coração batendo forte/ Acelerado/ As pernas, bambearam/ Mas sustentaram meu corpo suado/ Conversei com Ela/ Pedi clareza em meus passos/ Que me guiasse por caminhos sem breu/ Pedi por nós, todos nós/ Ela respondeu com presença dentro de mim/ Com a sonoridade das ondas de seu mar. Na abertura da aula inaugural, Marielda mencionou a formação, destacando o aprendizado com a bisavó, avó e mãe. Também ressaltou lideranças negras, como Vera Triunfo, Ernestina Pereira e Ana Centeno. E Marielda valorizou “todas as mulheres com histórico de luta e resistência, relacionado a questões do povo negro, no Brasil e principalmente no Estado”. Doutoranda em antropologia na UFPel, Marielda é pedagoga, com mestrado em educação. Aposentada, trabalhou na SME, 5ª CRE e SEDUC/RS. Ao encerrar, manifestou: “Siga sem medo, continue a caminhar, teu coração transborda amor e fé, nada vai te abalar”.

Pós-doutora Georgina Lima

Pós-doutora Georgina Lima

GUABIROBA PRESENTE – Luciana Custódio está, como disse, presidente do Conselho Municipal da Mulher. Acadêmica de pedagogia na UFPel, ela lembrou a sua trajetória, passando pelas várias etapas que são “permitidas” aos negros. E, divertiu-se ao recordar que, no afã de ser aceita e interagir, chegou a integrar centro tradicionalista, sendo até posteira. O preconceito racial foi inevitável. Ela observa a fase como reflexo da desinformação e doutrinação. Assim, somente ao chegar na universidade, passou a entender as contradições e injustiças. Na Guabiroba, onde é líder comunitária, está à frente de inúmeros projetos sociais, que aproximam cultura, saúde e geração de renda. Na aula inaugural, Luciana retomou o protagonismo pois, após o assassinato de Marielle Franco, ficou tão abalada que silenciou diante da dor, consequência da brutalidade e da agressão ao peso simbólico.

QUILOMBO EDUCA – Pós-doutora em educação, a professora Georgina Lima (FaE/UFPel), é uma das oito mulheres negras que lecionam na UFPel. Na sua fala, lembrou projeto que teve início em 2006, junto a comunidades quilombolas no Paraná. Como desafio, sistematizar a educação numa cultura marcada pelo empírico. E Georgina exemplificou as peculiaridades da escola, construída coletivamente, aberta aos saberes da comunidade, respeitando o conhecimento de gerações. “Antes de se tornar uma escola, é preciso que seja a escola que se deseja. Então, com itinerância para aqueles e aquelas, que precisam da educação como forma de alcançar a dignidade humana. Em 2006 estavam na beira da estrada. Atualmente, com a titularidade alcançada”, disse. E a docente afirmou: “Estamos na diáspora e partilhamos cultura, mas a hegemonia branca não partilha direitos, adquiridos pelo bônus que é ser branco”.

Luciana, Marielda Medeiros, Raquel Silveira e Georgina

Luciana, Marielda Medeiros, Raquel Silveira e Georgina

 

 

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