LIVRO : A difícil arte de desarmar o vírus do autoritarismo
Coletânea reúne 32 autores que dissecam as entranhas de uma sociedade perversa
Por Carlos Cogoy
Há um ano na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), iniciativa cultural que está completando dezessete anos, escritores que estavam participando do evento, foram hostilizados por grupos intolerantes à pluralidade de ideias. Trajando camisetas amarelas da seleção brasileira de futebol, alguns manifestantes espocaram foguetes, e elevaram os decibéis de equipamento de som. Como objetivo, tumultuar os debates, leituras e atividades da FLIP. O descontrole, ameaças e ofensas, não chegaram a comprometer a Festa Literária, mas abriram as veias de uma sociedade contaminada pelo autoritarismo. O incidente motivou um grupo de escritores, que saiu da FLIP com a decisão de organizar um livro. A ideia foi acolhida pelo editor Leonardo Valente, e assim começou a história da coletânea “Antifascistas – contos, crônicas e poemas de resistência” (184 páginas). A organização ficou a cargo dos autores Carol Proner e Leonardo Valente. No volume, criações de 32 autores do Brasil, Angola, Portugal e Espanha. A publicação é da editora baiana Mondrongo. Informações: (73) 3041.3116; (73) 9 8842.2793. E-mail: [email protected]
PORÕES – Em prosa e poesia, a coletânea permeia aspectos históricos, culturais e políticos. No texto “A Festa como Resistência”, que abre o livro, e autoria de André Diniz, narrativa que perpassa o fascismo de Mussolini, o nazismo de Hitler, as Fake News e o famigerado “cidadão de bem”, chegando às festas populares como o Carnaval. Nos poemas “Data” e “Paredão”, Hildeberto Barbosa Filho aborda o terror da ditadura civil-militar, e a libertação literária sob ameaça da violência. Já o poema “O meu fascista” de Micheliny Verunschk, expõe a brutalidade da postura autoritária. No conto “Dias de Nojo”, de Rosângela Vieira Rocha, a personagem Sílvia arruma pertences do marido Álvaro, recém falecido. Nos objetos ela vai descobrir sombras do passado de Álvaro, torturado no regime militar. O terror também está no conto “A última hora” de Urariano Mota. O jovem Vargas sente-se vigiado, está acuado, e procura apoio na advogada Gardênia. Ele sabe que o delegado Fleury está em Recife, e pressente que será a próxima vítima.
PRECONCEITOS – O fascismo manifesta-se nos atos e preconceitos. Nos textos “As coisinhas preciosas” do português Valter Hugo Mãe, e “Shirley e as batatas” de Leonardo Valente, a temática é a homofobia. No conto “Mami” do premiado cineasta Sylvio Back, o diálogo entre mãe e filha, disseca o gene nazista. Em “A mulher muralha” de Regina Zappa, uma corriqueira cena urbana, com o segurança de estabelecimento, agredindo adolescente que roubara uma bolsa. A multidão clama por linchamento, mas uma transeunte para e destoa do coro. Ela resiste: “Entrega para a polícia, para de bater! É isso que vocês são, um bando de fascistas, filhos da puta, covardes!”. Já no conto “Janela” de Marcelo Moutinho, um pedreiro tem a tarefa de abrir uma janela num apartamento. O profissional sugere uma mudança, mas a proprietária alega que é o quarto da empregada. Em “Leblon” de João Ximenes Braga, uma ata da reunião de condomínio, escancara os preconceitos e clichês da classe média. Em “Abordagem” de Jeferson Tenório, uma turma de guris, é perseguida por policiais militares. A vingança, no entanto, é inusitada. Em “O valor das coisas” de Gustavo Felicissimo, a diarista Dona Jacinta recebe o pagamento em euros. A cédula vai aguçar desconfianças, mas a personagem tem uma revelação. Em “A lição” de Fernando Molica, o dono de um pequeno bar, carrega todas as justificativas de um fascista suburbano. No “Efeito dominó” de Cinthia Kriemler, a morte do jovem Pedro Luis pela truculência policial, é bandeira de luta por justiça. No “15 de março” de Bárbara Caldas, o confuso dia após o assassinato de Marielle Franco.
DISTOPIAS nas ficções de um Brasil arrasado pelo perversidade do poder político. Teor dos textos “A última ceia” de Christiane Angelotti, “Cada palavra, uma morte” de Rodrigo Novaes de Almeida, e o “Manifesto presentista” de Juliana Neuenschwander.
RESISTÊNCIA – Carol Proner em “Gestação”, apresenta o quanto o vírus do fascismo circula nos corações e mentes. Uma cena trivial no aeroporto de Sevilha, com uma jovem polonesa, é a partida para narrativa sobre “valores protofascistas”. A questão ambiental está no texto “As invasões bárbaras: a desconstrução da proteção ambiental no Brasil” da jornalista Cristina Serra. Também no poema “Terra cunhã” de Eliane Potiguara. A internet e a mobilização social, estão no conto “Enquanto o fogo avança”, do angolano José Eduardo Agualusa. A coletividade aparece no poema “Uma ideia de mundo” de Leonardo Tonus. Já Luis Fernando Verissimo em “A divisão”, compara a Idade das Trevas, com a cisão entre economistas neoliberais e não liberais. Márcia Denser em “Poéticas perversas (nós avisamos)”, apresenta autores nacionais que, há algum tempo, em seus escritos, já abordavam a loucura da intolerância. A resistência também é o mote de “Saio não, senhor” de Maria Valéria Rezende, “Eu me acuso” da espanhola Pilar del Rio – viúva de José Saramago -, e “Sessão de resistência”, de Stella Maris Rezende, onde a senhora Delminda assiste ao filme “Bacurau”.