LIVRO : Estratégias das gerações de charqueadores
Sexta-feira às 18h na Livraria da UFPel, pelotense Rachel Marques estará autografando “Por cima da carne seca”
Por Carlos Cogoy
Olhar historiográfico sobre famílias de charqueadores, com lupa metodológica para demarcar o quanto as relações familiares, eram pensadas para preservar o núcleo de poder político e econômico. Essa postura que filtrava os laços, considerando as conveniências e melhores resultados materiais, está no “DNA” da mentalidade que, apesar da contemporaneidade, ainda delimita estratégias. Aspectos do livro que será lançado sexta a partir das 18h. Na Livraria da UFPel – rua Benjamin Constant 1.071 -, historiadora e professora Rachel Marques, estará autografando “Por cima da carne seca” (140 páginas). Publicado pela Editora da UFPel, o trabalho resulta da dissertação de mestrado na Universidade Federal do Paraná (UFPR).
CHARQUEADORES – A autora explica: “No meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), na graduação, pesquisei a mortalidade de crianças escravas em Pelotas no início do século XIX. Nessa pesquisa, observei que seguidamente algumas mulheres apareciam como proprietárias de escravos, mulheres essas que tinham o mesmo sobrenome: Silveira. A partir daí resolvi investigar mais a fundo e, em conversas com minha orientadora, Martha Hameister, descobri se tratar de mulheres de uma das famílias mais proeminentes do Rio Grande do Sul na segunda metade do século XVIII, da qual saíram muitos charqueadores e esposas de charqueadores nas gerações seguintes. Isso me intrigou, por isso optei estudar as estratégias sociais que essa família utilizou para manter uma posição tão proeminente por tanto tempo e, através dessa família, tentar entender a própria construção da hierarquia social”.
ESTRATÉGIAS das famílias, conforme Rachel: “O meu foco é entender como se dá a manutenção, a construção cotidiana da existência de hierarquia social. O estudo das estratégias de uma família nesse contexto específico, serve mais como meio para isso do que, como fim em si mesmo, já que me utilizo da metodologia da micro-história italiana. Com isso em mente, o livro inicia com um panorama contextual do Rio Grande no período estudado, a partir do qual justifico a pertinência da escolha da família Silveira. A partir daí, estudo a política matrimonial da mesma, quando casar os filhos, quando não casar, quando casar com pessoas de fora ou com primos, ou mesmo um tio, em uma ocasião. O que seria mais estratégico em cada momento. Também estudo as práticas do compadrio e apadrinhamento, já que naquele período a escolha dos padrinhos dos filhos tinha uma importância social enorme, indicando possíveis alianças políticas e econômicas. Além disso, há também o estudo da transmissão de nomes e sobrenomes no interior da família. Nomes esses que até hoje soam familiares para estudiosos da história de Pelotas, como ‘Dona Isabel de Pelotas (Dona Isabel Francisca da Silveira)’, e ‘Dona Mariana Eufrásia da Silveira’, entre muitos outros”.
PODER persistindo através de gerações. “O que o livro ajuda a mostrar é que um pequeno grupo de famílias detêm poder e monopólio econômico ao longo de várias gerações, utilizando-se de diversos mecanismo para tanto. Embora eu tenha enfocado nas primeiras gerações da família Silveira, sei que muitos de seus descendentes, depois de charqueadores, tornaram-se arrozeiros. Ou seja, por mais de um século parcelas dessa, e de outras famílias do mesmo tipo, mantêm-se como elite na nossa sociedade. Isso tudo tendo por base a exploração das demais parcelas, sejam elas compostas de populações escravizadas, libertas ou livres pobres”, diz a pesquisadora.
A história de Pelotas precisa ser reescrita
O passado é amargo. A “doçura” do presente, no entanto, não é para todos. Afinal, aumenta a
pobreza, e a violência se intensifica. Essa trajetória não decorre de fatalidade, mas de sucessivos cenários socioeconômicos que favoreceram minoria. Os sinais da desigualdade estão no cotidiano. Para entendê-los, é necessário investigar o passado. Conforme a professora Rachel Marques, a “história de Pelotas ainda precisa ser reescrita várias vezes, por meio de muitos vieses, tão múltiplos quanto sua população”.
CONTRASTE – Rachel observa a falta de abordagem sobre as “demais parcelas da sociedade na riqueza e opulência das famílias charqueadoras. Cito um exemplo: gosto muito de visitar o Museu da Baronesa e os casarões da praça Coronel Pedro Osório, construções fantásticas, porém acredito que o mesmo, ou maior espaço deveria ser dedicado à memória das famílias que, com suas mãos e suor, construíram aqueles espaços, literalmente, ou gerando a riqueza que, por fim, os financiou. Onde estão os espaços da memória da história negra em Pelotas, da história operária? Existem, mas ainda são muito poucos se comparados à sua importância”.
MUDAR – Ela acrescenta: “Existem vários grupos marginalizados nas narrativas tradicionais. No meu livro tento trabalhar um pouco a perspectiva das mulheres, ainda que apenas as de elite. Já no doutorado parti para o viés da história das pessoas livres e libertas que eram pobres, mas que possuíam imenso prestígio social. Assim como eu, outros colegas vêm retrabalhando esse e os demais períodos da história de Pelotas e do Rio Grande do Sul. É um trabalho quase infinito, ainda temos muitas ‘histórias’ a descobrir. Acredito que a Pelotas de hoje é fruto direto dessas construções históricas, portanto, quanto mais investigarmos, mais poderemos entender a nós mesmos, e também construir a sociedade que queremos. Quem sabe assim ela será menos desigual”.
Formação, pesquisa e docência
Ela foi moradora do Fragata, Rachel Marques estudou em escolas públicas. O fundamental foi concluído no então CIEP. Posteriormente, cursou o CEFET, sendo que a conclusão foi através de prova da DE. Na UFPel, cursou a licenciatura em história, formando-se em 2009. Na sequência, seguiu para a UFPR, defendendo o mestrado em 2012. Ano passado, doutorou-se também na UFPR. Atualmente, diz Rachel, leciona no Instituto Federal Farroupilha – campus Alegrete.
PESQUISA – “No doutorado, pesquisei lideranças e pessoas detentoras de prestígio social entre a população mais pobre e média da Vila de Rio Grande nas últimas duas décadas do século XVIII, pouco antes da fundação de Pelotas, portanto. Pretendo seguir me aprofundando nesse último tema, pois creio que é um assunto ainda pouco explorado e com um conteúdo imenso, que pode nos trazer muitas surpresas. Também estudo história das mulheres, e atualmente tenho me envolvido com questões relativas ao ensino de história e à permanência e êxito de alunos do ensino médio, temas pertinentes não apena à minha profissão, também essenciais ao Brasil de hoje”, informa.
A metodologia da historiadora
Rachel Marques no início deste ano, organizou o livro “Tecendo suas vidas: as mulheres na América Portuguesa” (editora Leiria). O trabalho está disponível online, bem como série de artigos da autora. Informações sobre acesso, contatos para palestras: [email protected]
MÉTODO – Ela menciona a metodologia de pesquisa: “Trabalho essencialmente com a micro-história, também aprecio muito a chamada ‘network analysis’. No entanto, o que mais me empolga é o ensino da metodologia de pesquisa em história e em educação. Ajudar os alunos a encontrarem seu próprio caminho na pesquisa é o mais gratificante, com certeza. Atualmente tenho trabalhado muito com o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas, e o Núcleo de Gênero e Diversidade Sexual do IFFAR-Alegrete, junto aos quais contribuo na organização de palestras e atividades. Tenho sempre muito prazer em poder divulgar minhas pesquisas e, tendo sido por toda minha vida, aluna de escolas públicas, acredito ser minha obrigação fazê-lo, e de forma gratuita”.