MAIORIDADE PENAL : Criminalidade não cairá com a redução para 16 anos
Aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados ao final de março, a redução da maioridade penal é polêmica que retorna com fôlego renovado. A diminuição dos dezoito para dezesseis anos, responsabilizando criminalmente o adolescente, tem conquistado apoio em boa parte da população. Mas a questão divide opiniões e, além do imediatismo, há argumentações consistentes. Entre as manifestações abalizadas, está a do conselheiro tutelar José Francisco Assumpção da Luz.
Por Carlos Cogoy
Ele conhece e vivencia a realidade das crianças e jovens em Pelotas. Educador social vinculado à Secretaria Municipal de Justiça Social e Segurança, José Francisco atuou diretamente com os jovens acolhidos nos abrigos municipais. Filho do pintor automotivo José Paulo Almeida da Luz e da servente de escola Vera Regina Assumpção da Luz, foi morador do bairro Cruzeiro até o começo da adolescência. Posteriormente, mudança para a Zona Norte.
Residindo no Núcleo Residencial Fernando Osório – Cohab Pestano -, deparou-se com amigos – crianças e jovens – que consumiam drogas. E José conta que, embora 90% dos moradores “sejam pessoas de bem”, foi chocante a proximidade com as crianças viciadas em drogas. Após quinze anos na Zona Norte, houve período em Porto Alegre. Atualmente, o conselheiro tutelar é morador nas imediações do Porto. Estudante de direito, José é pai de Stéfanie, Andressa e Nicole, filhos do primeiro relacionamento. Há dez anos, relacionando-se com Franciélen Silveira, é pai de Ana Carolina, Gustavo e Pedro Henrique. Ao DM – o único conselheiro tutelar negro de Pelotas, já que Daiane Dias está em atividade na Secretaria de Justiça e Segurança Social -, opinou sobre a redução da maioridade penal, racismo, preconceito, políticas públicas e a atuação junto à comunidade.
CONTRA a redução. José Francisco argumenta: “Considero que não se resolverá o problema da criminalidade. Em países ditos desenvolvidos, como Alemanha, Espanha, Estados Unidos, França, Itália e Inglaterra, a medida foi adotada e não houve decréscimo da criminalidade. Tanto que Alemanha e Espanha revogaram a lei que reduzia a maioridade penal. Ao contrário do que se propaga, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), não oferece apenas direitos mas estabelece que o adolescente infrator pode e deve ser punido. Respeitada a condição peculiar da pessoa em desenvolvimento, parte do problema está no ‘cumpra-se’. A legislação está aí mas muitas vezes não é cumprida devido à ‘elasticidade da lei’, ao enquadramento jurídico-legal na hora do registro do Boletim de Ocorrência. Sim, cabe registro de ocorrência contra adolescente. Mas o sistema carcerário brasileiro não ressocializa ninguém. E estudos no campo da criminologia e das ciências sociais, demonstram que não há relação direta de causalidade entre a adoção de soluções punitivas e repressivas, com a diminuição dos índices de violência. Considerando a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, a doutrina de proteção integral à criança e ao adolescente, fundamenta-se na Constituição, tratados internacionais nos quais o Brasil é signatário.
E, de acordo com o Cadastro Nacional de Adolescentes em Conflito com a Lei (CNACL), do Conselho Nacional de Justiça, apenas 0,5% dos jovens brasileiros cumprem medidas socieducativas. Então o processo é bem mais complexo, e passa pela efetivação de ações e políticas públicas para o combate à banalização da violência. No Brasil um adulto para ser condenado, tem garantido o pleno direito do respectivo e longo trâmite processual, bem como do contraditório. Por que um adolescente deverá ser trancafiado quase que sumariamente? Porque é a sensação que a população tem de que será assim, num passe de mágica, que se resolverá o problema da insegurança e criminalidade. Reduzindo a maioridade penal, tratamos do efeito e não da causa. Porque segundo os dados do CNACL, os jovens são as maiores vítimas e não os autores da violência. E considero equivocada a comparação do voto aos dezesseis anos, com a redução da maioridade. Aos dezesseis, o voto é facultativo e, para ato infracional, constam as medidas socioeducativas. Então saliento que, para a redução das taxas de criminalidade, o principal seriam as políticas e ações de natureza social”.
POBRES e negros serão potencialmente os mais atingidos com a redução da maioridade. “Não podemos dissociar as questões, e tudo está intrinsecamente ligado. Como a maioria é de negros e pardos, 50,7% conforme o censo de 2010, e é essa população que está situada nas classes menos favorecidas, fatalmente também é a maior em situação de criminalidade. Podemos questionar acerca de casos concretos. Por exemplo, o caso do índio que foi queimado em Brasília, e o do provável estupro de adolescente em Santa Catarina, envolvendo filho de alto executivo de uma emissora de tevê. Eles foram devidamente punidos? Se estivesse vigorando a maioridade penal reduzida, estariam encarcerados? Se fosse o filho do seu ‘Zé’ da esquina, qual teria sido a punição ou tratamento dispensado?”, indaga José Francisco.
MUDANÇAS dependem de políticas. José avalia: “Primeiro passo pode ser o fortalecimento, restabelecendo laços familiares. Então, clareza nos papéis, o que cabe aos pais e aos filhos. Também as responsabilidades do Estado e sociedade em geral. Como segundo passo, melhoria das condições de vida da população. Talvez vinculando o Bolsa Família ao Pronatec. Com isso, proporcionando a qualificação dos jovens e dos pais. Estruturando-se, já não dependeriam do paternalismo estatal. Para chegar a isso, necessidade de sincronismo, integralidade e horizontalidade nas ações dos entes públicos. As políticas devem ser de estado e não de governos ou partidos. Outro aspecto é o desconhecimento das leis, o que gera insegurança e muitas distorções.
É comum, por exemplo, a solicitação ou encaminhamento dos diretores de escolas ao Conselho Tutelar. Muitas das vezes são casos que deveriam ser elucidados em âmbito escolar. Também são frequentes os pais que recorrem ao Conselho, pedindo que os filhos sejam orientados sobre o que podem ou não fazer. Outra questão é reavaliar a classificação etária dos programas de tevê. Afinal, é o veículo que entra em praticamente dos os lares, desde o pobre até o mais abastado. Também menciono acerca da forma como são divulgadas algumas importantes campanhas. Será que a informação é entendida ou percebida da melhor maneira? É necessário debater a questão do consumo estimulado pela mídia. Já as famílias devem estar atentas aos sinais demonstrados pelos filhos. Ao invés de permitir as saídas para festas, talvez fosse melhor a convivência em família. Creio que são algumas mudanças que, provavelmente, muito auxiliariam para a diminuição dos problemas envolvendo a infância e juventude”.
RACISMO está presente na história de José Francisco. Ele lembra de uma entrevista de emprego. Estava disputando a vaga com um branco. José foi dispensado por “ser muito qualificado”. Ele comenta que, à época, havia completado o ensino fundamental. Noutra ocasião, embora estivesse a apenas duas quadras de casa, conversando com amigos na esquina, foi abordado cinco vezes por policiais militares. Na última abordagem, ao reclamar da insistência, teve arma calibre doze apontada em direção ao peito.
PELOTAS tem história amarga em relação à questão étnica. “Pelotas não valoriza adequadamente a população negra. Veja a situação das comunidades quilombolas! E a implementação da Lei 10639/2003, de que maneira está sendo trabalhada nas escolas? É ensinada a história e a cultura do povo afro-brasileiro e africano? Se é, em que moldes? Apesar de algumas melhorias relacionadas a políticas públicas, ainda estamos muito aquém do necessário. Infelizmente observo minha cidade como preconceituosa e racista. Hoje em dia é politicamente correto ter um negro, homossexual, transexual, bissexual, lésbica, entre outros rótulos, como amigo, mas quais as oportunidades para eles? Os estudantes que se enquadram nas questões das cotas como são recebidos e percebidos em nossas universidades e faculdades? O que incomoda é essa coisa velada. Quantos negros temos em posição de destaque na sociedade pelotense? Médicos, juristas, políticos, empresários, gerentes? Quantos secretários municipais negros temos? Gostaria muito de dizer que Pelotas não é preconceituosa ou racista,mas os fatos estão aí, alguns que citei e inúmeros outros que não nominei. Ao negro é possível a vaga e oportunidade de segunda classe, e não desmereço ninguém ou qualquer profissão. Porém, quando ascende, é desmerecido. E já ouvi manifestações como: ‘Aquele negrão pagodeiro agora é conselheiro tutelar’; ‘Quem te viu e quem te vê’; ‘Tá grandão agora’”, conclui.