Diário da Manhã

sábado, 20 de abril de 2024

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NEGRITUDE : De trabalhadora doméstica a cientista premiada

18 dezembro
09:09 2020

Destaque no País com a tese de doutorado em história, a pelotense Cláudia Daiane Molet foi babá na juventude

Por Carlos Cogoy

Claudia Daiane e orientadora Regina

Ela tem motivação extra para a expectativa pela vitória sobre a pandemia em 2021. Além da superação do drama da saúde pública, que marcou o cotidiano dos brasileiros em 2020, a pelotense Cláudia Daiane Garcia Molet poderá usufruir do curso de pós-doutorado. A conquista resulta de premiação oferecida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), do Ministério da Educação. Em 2019, ela venceu, na área de história, o Prêmio Capes de Tese. Sob orientação da professora Regina Weber na UFRGS, a historiadora pelotense pesquisou “O Litoral Negro do Rio Grande do

Sul: campesinato negro, parentescos, solidariedades e práticas culturais (do século XIX ao tempo presente)”. Neste ano, o trabalho foi lançado em livro pela editora Oikos. Técnica-administrativa em educação na UFPel, onde realizou o mestrado em ciências sociais – orientada pela historiadora Beatriz Loner -, Cláudia Daiane Molet integra o movimento de resistências UFPreta. Ao DM, ela abordou sobre o trabalho doméstico na adolescência, as vivências familiares, racismo e a trajetória como cientista.

UFPRETA – Claudia Daiane Molet menciona sobre a mobilização na UFPel: “A UFPreta é um movimento de resistências constituído por estudantes, professores, professoras, técnicas e técnicos da UFPel. Nasceu da urgência em nos aquilombar, pois na UFPel, assim como outras instituições federais de ensino, o racismo institucional é muito latente, e isto nos adoece, e estarmos na luta juntos nos fortalece na caminhada. Nossos corpos, nossas pautas, nossas lutas são silenciadas diante de gestões brancas que se dizem antirracistas, mas que na prática usam as ações afirmativas para se promoverem, quando, muitas vezes, apenas cumprem a lei, que só existe pela luta do movimento negro”.

Mãe Maria, Cláudia Daiane e o pai Seloir

RACISMO – A doutora em história reflete acerca do racismo: “O Estado brasileiro negou a existência do racismo até a década de 1980, estamos falando em mais de cem anos, de negação, depois da Abolição, mesmo diante de muita luta do povo negro. Por aqui tivemos explicações que éramos de raças biológicas diferentes, que vivíamos em uma democracia racial, que o preconceito é de classe social e não de cor. O racismo foi criado por brancos e beneficia os brancos que seguem usufruindo dos seus privilégios de raça, não biológica, mas raça enquanto uma construção histórica, social. Afinal quem é branco no Brasil, por exemplo, não é assim considerado na Europa. As teorias raciais do século XIX, que foram usadas para pensar o brasil Pós-Abolição e Republicano, serviram de base para que a mulher negra fosse considerada um objeto sexual e o homem negro, o bandido. E vemos estas teorias circulando ainda em pleno 2020, considerando o corpo negro como público. Daí temos inúmeros casos de Claudias, Miguéis, Amarildos e Betos, espancados, arrastados, largados, sumidos. Todas as vidas importam, mas algumas valem mais que outras, e a vida negra, indígena e quilombola, vale menos neste país alicerçado na escravidão e no racismo. Quando falamos que as Vidas Negras Importam, estamos falando que todas as vidas devem importar, inclusive as negras, já que somos os que mais morrem neste país”.

Tese publicada em livro

FAMÍLIA – Os pais da historiadora, Maria e Seloir, nasceram no interior de Piratini. A mãe e as irmãs, diz ela, trabalhavam na lide doméstica. O pai, desde a infância, começou a trabalhar na lavoura para ajudar a família. Nos anos oitenta, a família veio para Pelotas. E Cláudia Daiane Molet recorda que, no bairro Areal, residiu no Jardim Europa, Bom Jesus e loteamento Dunas. Na zona norte, a família residiu na Cohab Lindóia. A mãe seguiu no serviço doméstico, e o pai aprendeu o ofício de pedreiro. “Mesmo com o sonho de estudar, a primeira vez que meu pai entrou numa sala de aula foi para me acompanhar, na primeira série, quando eu chorava na porta da sala. Ele entrava comigo e sentava-se próximo. Então, ficava aguardando que eu começasse a conversar com meus colegas, e assim ia embora sem eu perceber. Quando cheguei na primeira série já sabia ler, escrever e fazer contas, pois minha mãe me ensinou. Mesmo diante de muitas dificuldades financeiras, os meus estudos sempre foram prioridades para meus pais, vejo hoje como um projeto familiar”, explica.

PRECONCEITO – Na escola, Cláudia Daiane Molet sofreu com os deboches sobre o cabelo e cor da pele. Ela diz que nas festas juninas, era uma das últimas escolhidas para dançar. “São marcas que carrego comigo ainda hoje. A própria abordagem do tema da escravidão em sala de aula, era algo muito traumatizante, pois ao colocarem aquela cena do escravizado no tronco sendo açoitado, sem um contexto, sem explicar a humanidade daquelas pessoas, causavam uma miscelânea de sentimentos e eu queria sumir daquela sala de aula. Há um tempo, me perguntaram quando eu soube que eu era negra. Eu fiquei pensando na resposta, pois em casa eu sempre soube que era negra. Filha de pais negros, eu tinha fenótipo negro: cabelos, pele, nariz, lábios, mas, aos poucos, na escola, um dos primeiros locais de socialização de uma criança, eu fui percebendo que meu fenótipo me colocava, em relação a pessoas brancas, numa situação de inferioridade. Não sei bem quando eu fiquei ciente disso, mas todos os dias havia situações de racismo na escola. Por isso, destaco a importância de uma educação antirracista, em que docentes tenham de fato o comprometimento de educar as crianças, mantendo-se atentos ao racismo reproduzido em sala de aula. A história da população negra não se resume à escravidão, à imagem do tronco ou ao 20 de novembro, deve ser abordada em todo momento, conforme aliás determina a Lei 10.639/2003 que tornou obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana”, enfatiza.

BABÁ – Adolescente negra e moradora da periferia de Pelotas, Cláudia Daiane Molet não se imaginava na universidade. Estudiosa, gostava de ler e escrever, e lembra de professora do Colégio Estadual Cassiano do Nascimento, que ressaltava a importância de chegar à universidade. Mas ela precisava trabalhar, e recorda: “Necessitava trabalhar para ajudar em casa, e assim, já em Rio Grande, comecei a trabalhar de babá. Foi lá que uma prima, que estudava na FURG, começou a falar do quanto eu provavelmente gostaria de estudar naquela universidade. Aos poucos comecei a sonhar em cursar uma faculdade. Consegui cursar um pré-vestibular, era monitora à noite e estudava à tarde, assim pagava o curso com meu trabalho. E no primeiro vestibular ingressei no curso de história. A partir deste momento muita coisa começou a mudar na minha vida, e na vida da minha família”.

SEM COMPUTADOR – Sobre a chegada à universidade pública, ela menciona: “Quando ingressei na FURG em 2004, aos 22 anos de idade, eu trabalhava de babá, aliás este emprego condicionou a escolha do curso, visto que eu trabalhava pela manhã e algumas noites dormia no emprego. Desse modo, necessitava de um curso à tarde. Eu conciliei por quase três anos as atividades de doméstica com o estudo. Lia os textos, na madrugada. Fazia os trabalhos à mão, pois não tinha computador. Era uma rotina muito exaustiva, pois eu começava o trabalho antes das oito horas da manhã e, após o meio-dia, tomava um banho e corria para alcançar o ônibus para faculdade. No ônibus eu sentia o cansaço do dia, mas ainda tinha toda a tarde de estudos. Nas noites que eu dormia no emprego, saía da faculdade direto para o serviço. Neste período, minha mãe e eu trabalhávamos juntas. Pensei em desistir da faculdade várias vezes, para além do cansaço físico, a universidade era um espaço não acolhedor para uma mulher, negra e doméstica. Estamos falando do começo dos anos 2000, um período anterior às cotas raciais e logo, havia poucas pessoas negras na universidade. Não tive nenhum professor, ou professora negra. Quando estava prestes a desistir do curso, minha orientadora me chamou para estagiar em projeto no Arquivo da cidade do Rio Grande, daí pude sair do emprego e me dedicar mais aos estudos e concluir o curso. Além disso, a experiência no arquivo e no manuseio em documentos do século XIX foram de suma importância na minha formação enquanto historiadora”.

UNIVERSIDADE BRANCA – “Quando cheguei na FURG, eu me assustei com a ausência de pessoas negras como estudantes, professores, professoras, técnicos. Estar naquele lugar, ciente que eu era uma exceção, me levou a estudar a história do meu povo, a nossa história negra. A sociedade racista, em que vivemos, dispõe para as mulheres negras lugares determinados: trabalhadora doméstica, tradicionalmente desempenhado por nós, desde a escravidão e, objeto sexual, onde nosso corpo é público, servindo aos deleites alheios, como bem pontuou Lélia Gonzalez. Logo estar num lugar diferente destes causa estranhamento, questionam nossa capacidade intelectual, nos pedem para servir um café ou carregar uma bolsa. A nossa presença incomoda. Na FURG, a disciplina ‘Cultura Brasileira e Identidade Nacional’ que cursei no primeiro semestre foi fundamental para esta tomada de consciência. Na disciplina estudamos a construção da identidade brasileira, vimos que em pleno processo de Abolição da escravidão, o Estado brasileiro estava discutindo as teorias raciais que hierarquizam os seres humanos, colocando a raça branca como superior, e o atraso do Brasil era explicado pela grande quantidade de negros”, diz Cláudia Daiane Molet, cujo trabalhando de conclusão de curso foi “Na escuridão da noite… Autonomia e transgressões de cativos marinheiros pelas ruas e becos da cidade do Rio Grande (1868-1870)”, defendido em 2007.

SANGUE E SUOR – A pesquisadora observa sobre a conquista proporcionada pela elogiada tese de doutorado: “A premiação contemplou a pesquisa de uma historiadora negra, da periferia de Pelotas, que pesquisou comunidades remanescentes quilombolas do Litoral Negro do Rio Grande do Sul. Uma pesquisa financiada, premiada e recentemente publicada pela CAPES. Uma premiação que contempla muitas pessoas, pois como bem diz Jurema Weneck ‘nossos passos vem de longe’ e, portanto, os meus vem da minha mãe Maria, do meu pai Seloir, das minhas avós Jandira e Alvina, dos meus avôs Juca e Melado, das minhas bisavós Luiza e Lídia, e de tantos e tantas que eu desconheço o nome. O sonho de manter a família negra, de ter acesso à educação, foram projetos negros muito recorrentes na história da escravidão e do Pós-Abolição. Estudar, ingressar numa faculdade, ser doutora e premiada é a continuidade de um sonho longínquo, assentado em senzalas, embalados por batuques, traçados com sangue e suor. Percebo que as comunidades quilombolas que pesquiso: Casca, Limoeiro, Capororocas e Teixeiras, também realizaram um sonho ao verem suas histórias e memórias em um livro que passa a ser usado na luta diária quilombola”.

MULHER NEGRA – A autora acrescenta: “Estou ciente que, infelizmente, sou uma exceção, pois os dados mostram que nós, mulheres negras neste país, quando comparadas com as brancas, somos as que menos temos acesso à educação, temos a menor renda, somos as mães que mais sofrem violência obstétrica, violência doméstica, somos as mães que mais choramos pela morte de nossos filhos, muitas vezes, pelas mãos do Estado, entre tantos outros índices que nos mostram que o racismo precisa ser superado. Entretanto correm em nossas veias a história de luta de muitas mulheres negras que historicamente construíram este país com seus saberes, fazeres, afetos, ancestralidade. Como bem disse a historiadora negra Giovana Xavier a prática feminista é negra, pois as mulheres negras desde a escravidão lutam por liberdade e por igualdade. Não podemos esquecer este legado.

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