O aprendizado com a diversidade étnica
Única negra à frente de uma secretaria municipal de educação no Estado, Ledeci Coutinho salienta mudanças em Canguçu
Por Carlos Cogoy
A maioria dos moradores de Canguçu, optou por espantar o marasmo e conservadorismo, e está vivenciando a primeira gestão da administração popular. As mudanças desacomodam e, entre aplausos e críticas, sacodem a estagnação. Entre os trunfos do prefeito Gerson Nunes, está o reconhecimento à competência de educadora negra. Como titular da Secretaria Municipal de Educação, está a historiadora Ledeci Coutinho. Em quase quinhentos municípios gaúchos, ela é a única negra à frente de uma secretaria de educação. A singularidade sinaliza para o desafio pela democratização da sociedade gaúcha. Ao DM, abordou sobre as primeiras iniciativas na área da educação no município vizinho. Também mencionou sobre a experiência como diretora da Escola Estadual de Ensino Fundamental D. Joaquim Ferreira de Mello em Pelotas, e a trajetória como filha de pequenos agricultores “semiescravizados”.
DIVERSIDADE – Em relação à Secretaria de Educação, Ledeci menciona: “O município de Canguçu apresenta grande diversidade étnica e cultural. Costumo dizer que o município é a representação em menor escala da diversidade brasileira. Temos na constituição de nosso município: negros quilombolas; índios guaranis; pomeranos; alemães; italianos; japoneses; portugueses e franceses. Isso significa que trabalhar a educação na perspectiva da inclusão da diversidade não é uma tarefa fácil. Entretanto estamos no caminho.
Em primeiro lugar, com a desconstrução de conceitos prontos e solidificados. Aqueles que exaltavam apenas uma referência étnica e cultural. Assim, apresentamos a diversidade de forma concreta nas atividades escolares cotidianas, bem como em eventos específicos. Então, fortalecemos eventos culturais que representavam uma determinada cultura, como o Festival da Cultura Alemã, que foi transformado em Festival da Cultura Alemã e Pomerana (FESTCAP). Além disso, criamos o ‘Fest Quilombola’ que representa outra cultura. Assim, diferentes culturas estão mostrando a diversidade. Ainda são passos lentos mas que já demonstram a possibilidade de vivenciar a diversidade étnico-cultural. E, conforme as palavras de um educador da nossa rede, essa valorização tem ocorrido de forma harmoniosa e respeitosa. São espaços e momentos onde os alunos e professores, assim como a comunidade escolar, podem vivenciar e conhecer outra cultura. No contato com a diferença, aprendem a respeitar, encontrando similaridades compartilhadas no caldo cultural que é a nossa realidade canguçuense. Estamos no início de um processo que levará alguns anos para oferecer resultados mais concretos, mas o importante é que estamos dando os primeiros passos com concretude”.
EXEMPLO – A secretária acrescenta: “Minha trajetória na militância política inicia em Canguçu na década de 80, quando fundamos o Partido dos Trabalhadores. O convite para assumir a Secretaria de Educação, está vinculado à trajetória política, mas também à experiência exitosa na gestão da escola Dom Joaquim Ferreira de Mello. Uma surpresa pra mim, pois não esperava pelo convite. Aceitei o desafio e voltei à terra natal para gestar a educação que sonhamos uma vida inteira, democrática, participativa e de qualidade. Implementamos a gestão democrática do ensino em Canguçu. Em quase dois anos e meio, prosseguimos a passos largos nesse processo. Fortalecemos a participação da comunidade escolar nos processos decisórios nas escolas, apostamos na formação continuada de nossos colegas professores, estamos desconstruindo os espaços antes considerados privilégios de poucos e ampliamos a participação dos diferentes setores do governo no espaço escolar. Ampliamos a aquisição de produtos da agricultura familiar na merenda escolar, renovamos o mobiliário escolar de todas as escolas, renovamos a frota do transporte escolar com a aquisição de doze veículos novos. Neste ano realizaremos a eleição de diretores para todas as escolas municipais. Então, ser a única secretária de educação municipal do Estado, é uma responsabilidade muito grande, já que além de servir como exemplo a outras mulheres negras, também as cobranças são maiores. De todo modo é uma vergonha para nosso Estado, pois temos uma representação significativa de negros e negras. Ao mesmo tempo desmascara o discurso de que a escola superou o racismo e a discriminação. Eu sou a prova de que ainda temos muito que construir na democratização do espaço escolar e na efetivação de sociedade inclusiva”.
RACISMO – A luta contra o “racismo cordial” que caracteriza o Brasil, tem obtido conquistas. Mas Ledeci avalia: “Houve muitos avanços na luta do movimento negro brasileiro, entretanto com o acirramento do racismo, percebemos que ainda temos muito a construir, principalmente no que diz respeito às questões das relações raciais e projetos de políticas publicas que atinjam a população negra. Refiro-me tanto da zona urbana quanto rural. Sabemos que ainda não aconteceram mudanças estruturais, que são necessárias para a mudança de vida das pessoas”.
DEMOCRATIZAÇÃO – Em Pelotas como diretora da Escola Estadual Dom Joaquim Ferreira de Mello, Ledeci deparou-se com evasão, prédio sucateado e preconceito institucional. Ela explica: “Por alguns anos fui pesquisadora em comunidades quilombolas no interior de Canguçu, onde compreendi o quanto e tanto ainda havia para ser construído em relação à dignidade humana do meu povo negro. Ao mesmo tempo em que estudava a realidade dessas comunidades, exercia a gestão da Escola Dom Joaquim Ferreira de Mello. À época, era a escola que recebia o maior número de negros da comunidade da vila Castilhos. Essa experiência foi que me preparou para o exercício da gestão de uma Secretaria Municipal de Educação. A experiência na gestão da escola foi marcada, inclusive, pela luta contra o preconceito institucional. Em relação ao funcionamento, o prédio não oferecida a menor condição de dignidade e respeito aos jovens negros, maioria naquele espaço. Os quatro anos de gestão foram de luta constante por respeito à dignidade humana daquela comunidade escolar. E encerramos essa etapa com algum sucesso já que, quando aceitamos o desafio da direção, a escola estava para ser fechada devido ao reduzido número de alunos. Com o nosso trabalho. conseguimos mantê-la aberta e aumentar o número de matrículas. Houve redução nos índices de violência no ambiente escolar, pois apostamos nos programas que incentivavam a responsabilização e cuidado com a escola, através de oficinas de dança, capoeira, teatro e o programa ‘Escola Aberta’”.
PARTICIPAÇÃO foi determinante para a nova fase na Escola Ferreira de Mello. “A relação com a comunidade escolar começa com a participação efetiva no conselho, sendo fortalecido e chamado a construir espaços de inserção na construção do ambiente de responsabilidade de todos, onde cada cidadão deveria se sentir parte naquilo que deveria ser comprado, ou na festa que deveria acontecer. Além disso, também nas discussões e construção de formação continuada dos professores, através de reuniões e assembleias. Considero que tais instrumentos construíram a consciência de que a escola é um espaço de elaboração coletiva de conhecimentos democráticos para o bem comum”, conclui.
TRAJETÓRIA – Sétima de oito irmãos, Ledeci aos doze anos deixou o interior para estudar. Em contato com a Pastoral da Juventude, integrou grupo de jovens que debatia a Teologia da Libertação e as ideias de Paulo Freire. No Colégio Franciscano Nossa Senhora Aparecida, pagava o estudo no curso de magistério, trabalhando na limpeza das salas de aula. Em 1988, no centenário da Abolição, motivou-se à descoberta pela história da negritude. “Minha trajetória escolar não foi diferente da maioria das crianças negras. Então, trajetória de exclusão, ausências e silenciamentos, mas principalmente de solidão, visto que não éramos a maioria na sala de aula. Não me via representada no currículo escolar e tampouco havia a preocupação com a diversidade presente nas escolas. A ausência de referências percorreu todo o período escolar desde o ensino fundamental até o nível de pós graduação”, revela. Na graduação em história, pesquisa sobre a resistência negra. No mestrado na Faculdade de Educação (FaE/UFPel), identidade e subjetividade.