O exemplo da coletividade negra
Por Carlos Cogoy
Divergências, antagonismos, diferenças, opostos que se atraem. “Sou porque somos”, princípio do exemplo de coletividade da comunidade afro. Trata-se da ancestral concepção de circularidade, contraponto ao individualismo branco e europeizado. No 1º Congresso de Negros e Negras de Pelotas, cuja abertura ocorreu ontem à noite na Câmara Municipal, e terá atividades neste sábado pela manhã e tarde com encerramento às 21h, o desafio democrático da convivência com diferentes realidades culturais e opções político-ideológicas. Para a médica, pediatra pelotense Regina Barros Goulart – doutoranda em biomedicina na Argentina – que, nos anos noventa esteve à frente de inúmeros projetos com a então ONG “Griô” na cidade natal, o congresso “O congresso já impactou e o vulcão está em erupção.
O risco é que o colonizador que foi plantado dentro de cada um e cada uma, seja maior que nossa tradição de ser. A possibilidade é que saiamos diversos mas com unicidade em algumas lutas. Enfim será a oportunidade de potencializar a vida dos negros e negras dessa cidade. Aqui considerando vida a partir de um conceito tradicional de matriz africana ou seja que tenha força vital que, para o povo yorubano é Asé, para os Bantu Ngunzu, capacidade de se reproduzir, mover e continuar em prol do coletivo. Ou seja é a capacidade de resgatar o Nbuntu : ‘Sou porque Somos’. O congresso é uma prática dos povos africanos, das tribos em que as opiniões são colocadas em debate, em que a circularidade é a grande estratégia, ou seja, todos e todas podem contribuir para as ideias. Na reunião ampliada de organização do congresso algumas falas foram fundamentais: ‘Toda vez que nos encontramos aprendemos!; Isto parece um vulcão que entra em erupção, adormece mas está sempre pronto a eclodir!; Malcolm X afirmava que, mais do que o número de pessoas, vale a ideia’. Para mim só a fase preparatória, com reuniões ao pé da árvore, o ir e vir, a cobrança e as falas já efetivaram o congresso”.
TRAJETÓRIA – Desde 2003, Regina está iniciada na tradição de matriz africana. Ela explica que é “angoleira, nacionalidade Bantu do Bate Folha, com a identificação Kota Mulanji mona Kelembeketa”. Egressa da UFPel, realizou a residência no Hospital Ernesto Dorneles em Porto Alegre. A lutadora social manifesta-se como “ficaiana, xavante e acadêmica”. Na trajetória, além do Griô Centro Pedagógicode Reterritorialização, foi uma das fundadoras do Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra, Conselho Estadual (CODENE), e esteve coordenando programas de saúde e secretarias em diferentes regiões do País. Atualmente coordena o Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matrizes Africana. Como integrante do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), esteve na Etiópia para a constituição do Programa de Aquisição de Alimentos África Brasil. Nas andanças como profissional de saúde e militante negra, já esteve na China, Japão, África do Sul, Cuba e Estados Unidos.
DISCRIMINAÇÃO – Regina menciona: “Todos e todas nós sofremos preconceito, ou seja interpretações a partir de ideias pré-concebidas. A mais corriqueira em pequeno, médio e alto grau, é a ideia de que negro não pode ser médico. Cotidianamente passo por isto. E sou prejudicada pois, frente ao pensamento do outro, tenho de me reafirmar como algo que sou. Com a discriminação, enquanto explico ao porteiro, ao paciente, e aos meus colegas o que sou, perco o equilíbrio, portanto perco saúde e adoeço. Diante disso, faço hipertensão, e o que ganho já fica menor se comparado a quem não vive essa situação. São muitos os episódios, mas hoje a minha preocupação maior está naquilo que ataca o coletivo e não a individualidade. Então está nas instituições que não preparam o porteiro, nem os meus colegas, orientando que ser negro é uma questão social construída pela sociedade, ou seja por todos e todas, e que tais instituições não deveriam permitir a manutenção disso. Hoje a preocupação é o racismo institucional, que leva as instituições a não cumprirem sua missão por negligência nessas questões. Então sofro discriminação pois, tornei-me uma consumidora mas, quem vende continua a duvidar e dizer que não tenho recursos. Também quando, mesmo arcando com os impostos e serviços públicos, não sou bem atendida”.
Cultura afro valoriza memória e identidade
Unidos pela tradição é projeto desenvolvido na Guabiroba, sob a coordenação da professora Luciana Custódio. Acadêmica no curso de pedagogia da UFPel, ela explana sobre o congresso: “Vejo o primeiro congresso de negras e negros de Pelotas, como algo de valioso para educadores, ativistas e sociedade em geral. No evento serão abordados, em diferentes eixos, temas que contribuem para o fortalecimento da cultura como resistência de um povo. E o congresso também será espaço para estabelecer novas parcerias, fortalecendo antigos laços e avaliando as políticas públicas para a comunidade negra”.
CULTURA – Luciana enfoca cultura, identidade e luta: “No Brasil a nossa cultura é conhecida pela disposição e alegria. É o que observamos na música e, em várias manifestações populares e regionais. Mas também possui um papel fundamental na questão organizacional de um povo, pois através dela desenvolvemos nova forma de pensar, inerente ao desenvolvimento humano. As manifestações culturais assumem um papel fundamental de resistência, respeito aos nossos ancestrais, unindo o passado, futuro e presente, valorizando lutas e conquistas adquiridas ao longo de séculos. Então, através da cultura e principalmente do movimento afro-brasileiro, é possível manter nossas raízes, promovendo a igualdade, resgatando nossa memória e reafirmando a nossa identidade”.