PENSAMENTO E AÇÃO : Libertação com terra, teto e trabalho
Na Asufpel-Sindicato, Frei Betto abordou erros e acertos da esquerda, elogiou o Papa e afirmou que o reino de Deus é projeto histórico
Por Carlos Cogoy
Erro de Lula ao capitular diante do apelo de prefeitos. A acolhida ao apelo de lideranças dos mais variados e distantes rincões, comprometeu a base popular do então projeto Fome Zero. Em 2003 e 2004, início da chegada da esquerda ao poder no País, o escritor Frei Betto integrou o governo Lula. Como assessor especial, esteve à frente do programa que visava o combate à fome, sinal extremo da miséria social. Conforme afirmou na palestra “Caminhos para o campo progressista” na sede da Asufpel-Sindicato, o programa estava estruturado em comitês gestores nas comunidades. Cabia aos comitês, formados por representantes de igrejas, associações comunitárias e sindicatos, identificar e cadastrar as famílias que não dispunham de condições básicas de alimentação. De acordo com ele, o Fome Zero tinha caráter emancipatório, assim a ideia era que, em três a quatro anos, as famílias já não dependessem de ajuda do governo. Mas, as “minioligarquias” sentiram-se ameaçadas, pois os comitês poderiam fomentar novas lideranças nas comunidades. E a pressão deu resultado. Assim, o cadastramento das famílias necessitadas, passou para as prefeituras. Diante disso, divergências internas no governo, e Frei Betto diz que voltou a ser um “ING”, indivíduo não-governamental. Já o “Fome Zero” começou a definhar, por conta das práticas clientelistas nos municípios, com o cadastramento servindo para barganhas.
ALIANÇAS com os setores elitistas e conservadores, também comprometeram os governos de esquerda. “Os dois mandatos do Lula e o primeiro da Dilma, foram os melhores da história. Mas o segundo da Dilma foi um desastre. Em especial pela nomeação de Joaquim Levy para o ministério da Fazenda. Então é preciso clareza acerca dos erros cometidos”, disse Frei Betto. Autor de mais de sessenta livros, ele mencionou que, nas obras “A Mosca Azul – reflexão sobre o poder” e “Calendário do Poder”, debate sobre os bastidores.
CONTRAPONTO – Poderia ser diferente. Segundo Frei Betto, ao invés de “alianças por cima, com os inimigos de classe”, sob a justificativa da sustentabilidade política, o governo deveria ter valorizado sua origem popular. E o autor de obras como “Batismo de sangue” – adaptado para o cinema em 2007 -, observou a postura de Evo Morales na Bolívia. Ao chegar ao poder no país vizinho, Evo Morales também se deparou com a resistência dos parlamentares. No entanto, aliou-se com a maioria da população que, gradativamente foi ocupando cadeiras no legislativo.
BASES – Empenhando-se por esboçar autocrítica em relação aos governos de esquerda no País, Frei Betto também afirmou que faltou a “alfabetização política do povo”. Conforme mencionou, foi viabilizado o acesso a bens materiais, mas sem a mesma medida para os “bens sociais”. E dizendo que “estamos colhendo o que não plantamos”, Frei Betto declarou a desproporcionalidade entre uma “nação de consumistas, que não dispõe de condições dignas na saúde, transporte e saneamento”.
LIBERTAÇÃO – Durante a ditadura militar, Frei Betto foi preso e torturado. Na segunda metade da década de setenta, após quatro anos no cárcere, ele morou numa favela no Espírito Santo. Durante cinco anos, vivenciou as comunidades eclesiais de base, dedicando-se à teologia da libertação. “Ou a fé é militante, ou não é a fé em Jesus. Afinal, Jesus foi um prisioneiro político. Ele não morreu de hepatite, mas foi condenado à pena de morte. Então, com história que contraria a imagem idílica. Na cabeça de Jesus, o reino de Deus é um projeto histórico, pelo futuro da humanidade”.
Papa Francisco
Frei Betto corroborou o dito popular, e ressaltou que o poder não muda ninguém. Mas, sim, revela. E avaliou a postura de Papas recentes, em relação a comunidades eclesiais de base. Para João Paulo II, disse, as CEBs eram “suspeitosamente toleradas”. Com Bento XVI, prevalecia a concepção na qual “existe um bando de ovelhas para ser tosquiadas”. Com o Papa Francisco, segundo ele, a “igreja é um corpo conservador, com uma cabeça progressista”.
ENCÍCLICA – Frei Betto destacou que o Papa Francisco assumiu, deparando-se com Europa burguesa, racista e xenófoba. No entanto, tem estado ao lado dos imigrantes e, através de circulares, divulgado o compromisso social diante de temas como a terra, moradia e trabalho. Num contexto cujo conservadorismo se radicaliza no mundo, os textos do Papa Francisco foram reunidos em livro. Ele citou o filósofo e educador Edgar Morin, que elogiou a encíclica “Laudato Si”, inspirada em São Francisco de Assis. Para o autor francês, disse Frei Betto, “na história ambiental, ninguém escreveu melhor do que o Papa”. O enfoque supera a “Carta da Terra”, pois abrange causas e consequências. O texto do Papa Francisco é de 2015, e tem como subtítulo “Sobre o cuidado da casa comum”.
BASE – O magnata norte-americano Nelson Rockefeller (1908/1979), durante o período da Guerra Fria, esteve várias vezes no Brasil. De acordo com Frei Betto, ele constatou a expansão da teologia da libertação. Para conter o pensamento e ação das comunidades eclesiais de base, Rockefeller desembolsou recursos para igrejas pentecostais. O dinheiro foi para compra de cinemas, uma prática das “igrejas canibais, que têm uma enorme boca na calçada, engolindo transeuntes”, disse Frei Betto.
A cabeça pensa conforme o local no qual os pés estão pisando
Cinco principais desejos humanos, na interpretação de Frei Betto: poder, poder, poder, dinheiro e sexo. Na palestra em Pelotas, ele recordou episódios capazes de ilustrar o deslumbramento pelo poder. No início do governo Lula, lembra que alguns “companheiros” já não admitiam mais o tratamento. E preferiam ser chamados de “excelência”.
KOMBI – Numa ocasião no Palácio do Planalto, necessitava de veículo para deslocamento. Consultou a equipe responsável, mas ouviu que os carros estavam na rua. Daí lembrou que, além de veículos Gol e Santana, a garagem também dispunha de Kombis. Então requisitou uma, e notou que o funcionário estava em choque. Conforme explicou, jamais alguém havia pedido uma Kombi.
CULTURAS distintas não devem se sobrepor em sociedade. Na periferia, lembra de senhora que foi consultar o médico. Ela o considerava “doutor”, com estudo, alguém superior. Frei Betto então perguntou ao médico se ele sabia cozinhar. O médico disse que não sabia preparar um ovo. Então, Frei Betto perguntou a ambos: “Se estivessem numa mata perdidos, e só houvesse uma galinha, quem sobreviveria?”. Dona Maria abriu um sorriso, pois percebeu que seu saber tinha sentido e valor.
ENTENDER – A mente deve pensar a partir de onde os pés pisam. Frei Betto explica: “A teologia da libertação está viva, mas a leitura da Bíblia deve ser a partir do mundo do pobre. Outro exemplo pode ser um texto de Marx. Se for lido na Sorbonne, terá hermenêutica diferente do que a leitura numa guerrilha”. Para ele, o momento é para o fomento e retomada de grupos, seja nos bairros, sindicatos, movidos por interesses literários, sociais, artísticos.