UFPEL : O preconceito não impediu sua formatura em medicina
No sábado houve o baile da formatura em medicina na UFPel, e a bajeense Miriam Walker foi a única negra na turma
Por Carlos Cogoy
As cotas são essenciais. Afirmação de Miriam Walker que, semana passada, formou-se em medicina na UFPel. Única negra na turma de formandos, a bajeense conta que, diariamente, enfrentou racismo e preconceito. Embora não tenha ingressado através da política de cotas, ela ressalta que o instrumento é fundamental para atenuar a desigualdade histórica. Na sequência da formação, planeja a residência em “medicina de família e comunidade”. Ela explica: “Costumo brincar que é a ‘medicina de humanas’. Gosto da proximidade com as pessoas, a forma de atenção e cuidado, a participação social, a intervenção construída coletivamente, a resolutividade. Médico de família é aquele que acompanha a vida toda. É o coordenador do cuidado”.
RACISMO – Em 2016, houve uma colega negra que concluiu o curso de medicina na UFPel. Neste ano, foi a vez de Miriam. Para 2018, como observa, provavelmente não haverá negro na turma de formandos. De acordo com Miriam, não se trata de acaso ou coincidência. Ela identifica como “sistema, estrutura. E não basta entrar. Permanecer é muito difícil, doloroso. E, dentro da universidade, não há qualquer lugar para que se encontre ‘afeto’, ‘acolhimento’ real, porque, por mais empatia que um indivíduo tenha, não estando exposto ao racismo, ele não é capaz de sequer tocar a superfície do tanto que isso nos afeta”.
ESTRATÉGIA – Miriam relata: “Sempre digo que fui a primeira cotista da UFPel, antes mesmo delas existirem. Reprovei no segundo semestre do curso. Sendo negra e com uma aparência que, acredito, remete fortemente à pobreza no imaginário de muitos, fui compreendida como cotista. Ninguém considerava incongruente existir só uma, né? No ano que entrei, tinha uma colega negra. Haviam negros em outras turmas, mas sempre poucos. Confesso que, depois das experiências que tive na UERGS, percebi que deveria me manter afastada de grandes grupos ou discussões. O racismo muda a trajetória da gente. Encarei a UFPel sendo muito mais reservada. A universidade insinua que nossa permanência é uma concessão, é preciso ‘aceitar as regras’ que ela nos impõe. No caso da medicina, há sempre a questão de ‘se encaixar no padrão’. Sendo completamente fora dos padrões imaginados, aquele não poderia ser o meu espaço. E muitos trabalharam para reforçar isso. Decidi que a minha socialização em Pelotas deveria ocorrer em outro ambiente. A padronização era um preço muito alto a pagar pra me sentir aceita”.
PRECONCEITO – Sobre o cotidiano na formação, Miriam menciona: “Não houve um único dia em que não sofri com racismo e preconceito. Desde professores dizendo que sabíamos determinada matéria porque ‘não éramos cotistas’, aos que diziam que ‘só pobre é gordo’. Também a abordagem inadequada por parte de seguranças, com braços estendidos e portas fechadas, impedindo minha passagem, ou técnicos de enfermagem gritando comigo pelo corredor e ‘revistando’ prontuários que estavam em meu poder, a incredulidade dos colegas ao perceberem que ‘o esteto de patrão’ era meu, preceptora achando divertido que residente açoitasse o namorado negro ou, ao fazer reclamação na Ouvidoria, e ouvir a pergunta ‘por que vocês estão com essa mania de que tudo é racismo?’, ouvir justificativas de atitudes racistas com o famoso ‘minha esposa até é morena’, ser chamada de ‘esquizoide’. Alguns dos exemplos e situações”.
DOCENTES – Em relação ao convívio com os professores, Miriam observa: “Muitos são imparciais. Outros, esforçam-se pra sê-lo. São poucos os docentes que perdem a civilidade e declaram seu racismo abertamente. Muitos preceptores têm dificuldade em equacionar a relação pessoal e a profissional e, em vista disso, alguns colegas apontavam a ‘injustiça’ de minhas avaliações subjetivas. Já tive, por exemplo, nota descontada para ‘combinar’ com a nota um pouco mais baixa de um colega”.
TRAJETÓRIA – Na cidade natal, Miriam residiu até os quatro anos. Com a família, os pais são formados em direito e letras, ela morou em diferentes cidades. Assim, estudou tanto em escolas públicas, quanto particulares. O ensino médio foi cursado na rede privada de ensino. Em 2000 passou a tentar a medicina e, em duas ocasiões, preparou-se em cursinhos específicos. Em 2001, passou a cursar biomedicina. E, enquanto também teve períodos nos cursos de enfermagem, administração de sistemas e serviços de saúde, Miriam prosseguiu tentando o ingresso na medicina. “Fiz o ENEM em 2009. Já 2010 foi o primeiro ano de SISU, mas não tive ‘nota suficiente’ para medicina na primeira chamada. Meu nome ficou na lista de espera. Foi uma surpresa o ingresso no semestre seguinte”, diz ela.
LUTA – Miriam salienta a coletividade: “Não consigo me imaginar médica sem considerar as questões sociais. Fui criada dentro do movimento negro e fui acumulando pautas ao longo da vida. Não seria capaz de abandonar isso justamente no momento que mais posso contribuir. Ser médica me coloca, aos olhos do mundo, em outro patamar. E isso tem que ser usado em favor das nossas lutas”. Aos jovens e aqueles que estão empenhados no ingresso à formação superior, ela recomenda: “É possível. Ocuparemos todos os espaços. Digo que estou sempre disponível e tento estar mesmo, qualquer pessoa que me veja na rua, é só chegar e bater um papo. Porque não é fácil, a academia é um ambiente hostil. Mas não precisamos passar por ela sozinhos. Somos poucos lá dentro? Sim, ainda. Daqui da porta de saída posso dizer que há muito amor do lado de fora, formamos conexões de apoio que ultrapassam fronteiras. É isso que nos permite seguir e resistir. Tem uma música, chamada ‘Escolhas’, de Tiago Delau, que diz o seguinte: ‘se é pra frente que se anda, meu bonde não engata ré’”.
Fraudador não pode ser médico porque não tem ética
Repercutiu no País, a polêmica sobre os estudantes que fraudaram o acesso a cotas no curso de medicina da UFPel. Ela conta que ouviu de um médico: “Fraudador não pode ser médico, porque não tem ética”.
DIREITO – Miriam reflete: “Quando a UFPel introduziu a política de cotas, eu sonhava com o início do semestre. Queria ver ‘bixos’ e ‘bixetes’ pretos! Me causou estranheza notar que não tinha mudado muito o cenário. A justificativa da universidade era que ‘os negros não sabiam que podiam acessar as cotas’. ‘Se a culpa é minha, boto onde eu quiser’, então só podia ser nossa. E toda vez que encontrava um fraudador na Leiga, me sentia agredida, mesmo sabendo que o meu sofrimento não comove. Quem frauda tem um sentimento de pertença que jamais me foi permitido vivenciar. É muito fácil ser negro só na autodeclaração, né? Ser negro na vida real é diferente. Agora é tarde, aposto que essas pessoas inventariam histórias que corroborassem sua falsa identidade étnica, mas fico imaginando as vivências de racismo que tiveram ao longo da vida”.